Via Gemito, de Domenico Starnone

Por Sérgio Linard 

Domenico Starnone. Foto: Isabella De Maddalena



“Não sei bem o que aconteceu depois, só me lembro perfeitamente daquela frase. O resto é poeira, fragmentos de sons, palavras como aparas sob a plaina do tempo e outras fórmulas enfáticas que aqui servem substancialmente para dizer isto: uma narrativa é uma narrativa; até quando narra apenas a verdade, usa e abusa da fantasia.” (p. 332)

Como um livro que conta a história de um pai egoísta e que está concentrado em relatar as experiências de um filho na busca por compreender a complexa figura paterna pode ser dedicado à mãe? Se, assim como este que aqui escreve, o leitor intentar encontrar respostas para esta pergunta enquanto lê Via Gemito, precisará ter em mente que as possíveis saídas para esta indagação só aparecerão nas últimas dez páginas das quase quinhentas deste romance (ao menos na primeira tradução e edição brasileiras). Algo que parece contraditório, mas que além de ter sentido do ponto de vista do conteúdo, enriquece a obra do ponto de vista da forma.

Domenico Starnone já é um autor que dispensa apresentações porque suas obras traduzidas para o Brasil têm sido constantemente bem recepcionadas pelos leitores e pela crítica. Até este ano, o mercado brasileiro só dava acesso aos seus textos mais curtos, catalogados na questionável categoria de “romance breve”. Via Gemito chega, então, como uma forma de se conhecer as histórias mais robustas do autor que consegue, também nesta versão maior, manter a qualidade do contador de histórias que se deixa perceber em seus livros de menor extensão. Em nossas terras, porém, o romance chega com mais de vinte anos de atraso, pois o seu lançamento original ocorreu na Itália em 2001, garantindo a Starnone o prestigiado prêmio Strega naquele mesmo ano. 

A obra tem declaradamente um teor autobiográfico e parece ser uma forma que o autor encontrou para repisar eventos da vida e da relação com seu pai, um ferroviário frustrado com a impossibilidade de dedicar-se integralmente aos seus trabalhos artísticos como pintor. Federí, o pai, no entanto, não é lido nem escrito como alguém que apenas se frustra com as demandas do mundo do trabalho e com as demandas familiares; ele, na verdade, faz-se revoltado porque as pessoas ao seu redor, incapazes de notar seus flagrantes dons, não se portam como mecenas de sua arte. Assim, todos ao lado dele, tecendo ou não críticas às suas pinturas, são inúteis, imprestáveis e alienados. A ele cabe o peso de carregar a sisífica labuta de ser artista em um mundo incapaz de compreendê-lo. 

Sustentar, porém, um personagem como esse por quinhentas páginas seria algo que, certamente, levaria qualquer leitor, o mais especializado ou o menos atento, ao abandono da obra. Personagens unidimensionais, que são exclusivamente bons ou maus, são a receita para o insucesso narrativo e Domenico Starnone, em todos os textos lidos até aqui, demonstra saber muito bem deste fato. Mesmo com o grande teor autobiográfico sobre o qual o livro se debruça, o compromisso com o fazer literário se sobressai e a obra não se torna mais uma insuportável versão escrita de sessões terapêuticas de quem a escreve, colocando-nos na não escolhida posição de psicólogos. 

É ciente disso que Starnone dá ao seu pai ficcionalizado um arco formativo que se confunde, também, com o arco formativo do narrador em primeira pessoa e permite a reflexão mais aprofundada dos porquês daquele genitor agir como age. Como afirma a citação de abertura desta resenha, o narrador de Via Gemito tem plena consciência de que, mesmo focalizado em narrar verdades sobre si e sobre sua família, haverá, ali, uma forma também fantasiada de conduzir essas histórias da vida real. A mimesis não é, pois, encarada como a equivocada tradução de imitação da vida; contrário a isso, ela é declaradamente uma, das várias possíveis, percepção da vida. 

Há no romance, ainda, uma das melhores características da obra literária feita com a esperada seriedade: teorias sem reclames explícitos. Ao trazer para o debate a memória e a veracidade ou o falseamento de suas lembranças, o narrador lança na superfície do texto literário uma discussão teórica encabeçada, entre tantos, por Assman em Espaços da recordação, em que a autora destaca a importância de que escritores, ao se dedicarem a narrativas autobiográficas, não deixem de considerar a possibilidade de que muitas daquelas memórias sejam apenas criações e não expressões fiéis da realidade; ou, ainda, que mesmo com algum nível de fidelidade, as memórias jamais serão a evidência concreta do vivido. É essa preocupação do narrador — constantemente demarcada — que garante ao pai uma profundidade para além do arquétipo narcísico do qual a história parte, mas, sorte nossa, não estanca ali.


 
“Mas meu pai — assim dizia agora, rindo — não sentia nenhum rancor por ela. Sentia rancor pelo torneiro, seu pai, que não quis saber de desculpas e, no dia seguinte àquela terrível noite de medos, fez uma coisa de enorme crueldade. Não quis saber de argila, de bonequinhos, da alegria que aquele riacho lhe dava e, passando por cima de tudo, tomou uma decisão inapelável. Chamou o agente dos correios Simeoni e lhe confiou seu primogênito para que o levasse de Reggio Emilia para Nápoles, com o objetivo de entregá-lo à sogra, dona Funzella” (p. 277, destaque meu)

Federí, pai do narrador Mimí, quando criança foi forçado pelo pai a ser criado por sua avó materna. Não obstante, passados alguns anos, aquele torneiro mudou-se para a casa no piso superior da sogra, onde constituiu nova família e criou os filhos do novo arranjo, enquanto seu primogênito estava destinado ao desprezo paterno no andar de baixo. A partir daqui a história dedica uma boa parte do segundo capítulo — são três ao todo — a descrever como aquele pai egoísta teve desprezo e rejeição por parte de seu genitor, proporcionando uma complexidade maior ao personagem e, também, à história que passa a confrontar, textualmente, as tristes memórias relatadas por Federí com sua forma de narrá-las.

Diante dessa dada incongruência, como destacado no excerto acima, aprofunda-se mais aquilo que serve como fio condutor desta narrativa: a memória, seus falseamentos, suas criações, suas recriações e seus traumas. O filho-narrador parece e demonstra estar, pois, consciente de que aquilo que narra a partir do que lembra ter vivido com seu pai, ou lido nos diários dele, é apenas um filtro do mundo e, por isso, deve ter as informações tratadas como tais. 

E como a homenagem à mãe, anunciada desde a primeira página, constitui-se? Exatamente em toda a obra. Dedicado e focalizado em relembrar daquele que o machucou e do ódio por isso gerado, o narrador registra como o amor de sua mãe foi sempre tão superior que tudo aquilo por ela suportado e registrado em mais de quatrocentas páginas não foi capaz de retirar, diminuir ou limar sua beleza. Uma homenagem banhada de culpa, de ressentimento, mas sobretudo de um grande pesar não pela lembrança e sim pelo esquecimento. Um mea culpa sinceramente bem articulado.

Entre uma busca e outra por pinturas e reconhecimentos familiares, Via Gemito é, portanto, leitura obrigatória para quem já acompanha a obra de Starnone ou para quem se interessa por boa literatura. A chegada tardia do livro no Brasil revelou, infelizmente também de modo atrasado, que o autor tem um projeto literário em que seus livros mantêm forte diálogo entre si. Aqueles que já leram outras histórias suas perceberão, sem grande esforço, a presença de personagens que aparecerão, posteriormente, em outras narrativas, como é o caso da menina de Milão, que tem sua história como mote para Línguas. Aqui, na história de Via Gemito, vemos que, revisitando a rua de sua casa durante a infância, Starnone constrói um romance exemplar — com uma narrativa linear, sem quaisquer inovações técnicas — que, mesmo autobiográfico, preocupa-se sobretudo com a qualidade e a honestidade literária. 

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Via Gemito
Domenico Starnone
Maurício Santana Dias (Trad.)
Todavia, 2025
464p.

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