O não-dito no romance Asfalto selvagem
Por Amanda Fievet Marques
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| Nelson Rodrigues Foto: Adalberto Diniz |
As personagens de Nelson Rodrigues, que encontramos sempre arremessando-se umas sobre as outras, crispadas, hirtas de medo ou de fé, trôpegas, sôfregas, são frequentemente tomadas por paixões. Paixões terríveis, capazes de levar à ruína e à loucura; paixões nostálgicas, em que se rompem os diques do passado e o presente é súbito inundado de desejo; paixões de domínio, paixões religiosas, paixões incestuosas, pervertidas, obsessivas, transgressoras. No romance Asfalto selvagem, publicado inicialmente como folhetim no jornal Última hora, e depois em dois volumes, em 1961, pela editora J. Ozon, há toda uma proliferação e dramatização das paixões humanas, essas comoções que tocam “até as raízes do ser” (Rodrigues, 1994, p. 43), em seu longo e variado espectro.* O notável, no entanto, é que, o mais das vezes, a consumação dessas paixões se exprime por um não dito, uma elipse, uma nomeação indireta.
Na primeira parte, “Engraçadinha, seus amores e seus pecados”, em Vitória, no Espírito Santo, em uma família abastada, a jovem Engraçadinha está noiva de Zózimo, mas ama seu primo — na verdade, irmão, conforme o leitor descobrirá mais tarde — Sílvio, noivo, no entanto, de Letícia, prima e amiga de Engraçadinha, e que, na verdade, nutre por ela um amor secreto. No capítulo 9, dá-se a noite do baile da formatura de Sílvio e de seu noivado com Letícia. Engraçadinha o convida para encontrá-la na biblioteca, e quando ele abre a porta depara-se com ela nua sobre a mesa. Diz-se do ato de consumação, todavia, apenas com uma elipse. Salta-se das preliminares direto às consequências. O não-dito que descreve a cena é apenas “aquele corpo enroscado!” (p. 45). É a metonímia que reconstrói partes do transcorrido com detalhes corporais: ela arranhando as costas dele e, em seguida, um beijo na boca. Há, então, um corte, uma interrupção brusca que salta do beijo para Sílvio repreendendo Engraçadinha, mandando que se vestisse. Fica a cargo do leitor a tarefa imaginária de recriar-se mentalmente o decorrido.
Na estrutura narrativa, essa sequência é parte de uma história intermitente que Engraçadinha conta ao Irmão Fidélis, quando este a indaga sobre a acusação feita por tio Nonô de que ela estaria grávida do próprio pai. Depois de muito enrolar, protelar, ela conta ao Irmão Fidélis que se encontrara com o primo Sílvio, não com o pai. O Irmão Fidélis ao abordar sua imaculabilidade, sua virgindade, emprega outro não-dito. Em vez de fazê-lo nitidamente, ele contorna pelo eufemismo: “Sílvio foi o primeiro?” (p. 49). A ausência de qualquer complemento ao que se insinua na pergunta (“com quem se deitou”, p. ex.) cria o efeito elíptico, que é reforçado pelas reticências na fala do Irmão Fidélis quando tem de repetir a questão: “Pergunto se, de fato, teu primo foi o primeiro ou se…” (idem). Nelson Rodrigues, desse modo, cria uma estética do silêncio e da suspensão em que a força do enunciado encontra-se no que está ausente, implícito, indireto. Cabe ao leitor, assim, a função de decodificar o sentido, que se deixa apenas entrever.
No capítulo 19, descobre-se a paixão de Letícia por Engraçadinha. É a véspera do dia em que Engraçadinha, a mando do seu pai, vai ao ginecologista. Letícia vai até a casa de Engraçadinha para lhe falar, e enquanto ela está pensando no momento em que ficará parcialmente despida para o médico, Letícia diz que tem uma surpresa que explica toda a sua abnegação, todos os seus atos em prol de Engraçadinha, dentre os quais dar-lhe seu próprio noivo. Ela pergunta a Engraçadinha em sequência: “sabe por que eu faria tudo por ti e muito mais?”, “e sabe por quê?” (p. 94). Quando Engraçadinha pergunta, finalmente, “por quê”, Letícia tasca-lhe um beijo e a derruba na cama. A reiteração interrogativa e a impossibilidade de formular o desejo homoerótico conduzem a uma suspensão que é resolvida apenas pelo gesto, no corpo. Constata-se que o estilo procede ainda por aposiopese, e o leitor se depara com o silêncio brusco seguido do beijo, que é a resposta física substitutiva.
No capítulo 26, Sílvio entra tarde da noite no quarto de Engraçadinha, mas é Letícia quem dorme na cama de Engraçadinha, enquanto esta se encontra no chão. Sílvio começa a beijar e tocar Letícia pensando tratar-se de Engraçadinha, e ela embaixo se toca ao ver que Sílvio toma Letícia por engano. Letícia sente prazer ao ser confundida por Engraçadinha e fica a todo tempo em silêncio: “ela não fala. É possuída no silêncio e nas trevas e sem uma palavra”, “Agora deixa-se possuir em silêncio. Não diz uma única vez o nome do ser amado” (p. 126). Em seguida, dá-se o ápice: “De bruços, Engraçadinha sente que eles sofrem agora e que há, nas trevas, um grito prestes a subir como um dardo de loucura. Os dois parecem agonizar, parecem morrer. Sílvio morde as palavras como se elas pudessem sangrar: ‘Querida! […]’” (p. 126-7). Acrescenta-se ao silêncio de Letícia outra camada de silêncio quando Engraçadinha concomitantemente alcança o clímax: “O grito, que gostaria de dar, não chegou a erguer-se; partiu-se no fundo do seu ser. Súbito, uma paz imensa no quarto. Ele não sabe nada. Engraçadinha sente um vazio de êxtase perdido” (p. 127). Enquanto Sílvio fala e suas palavras são meras banalidades, redundâncias melodramáticas, Letícia e Engraçadinha permanecem mudas, guardam a culminância no recesso do ser. O narrador não nomeia o gozo, mas recorre a uma articulação de perífrases, metáforas e metonímias que contornam, transferem, deslocam a denominação direta. Perífrase, pois lê-se “um grito prestes a subir como um dardo de loucura” em vez de simplesmente “prestes a ter um orgasmo”; metáfora, pois projeta-se na aproximação do prazer a desrazão, a agonia de um moribundo; metonímia, pois encontram-se apenas sinais e resquícios do prazer, como o “grito…”, a “paz imensa”, um “vazio” (idem).
Nota-se, gradualmente, a constituição de uma estrutura triangular do desejo, que além de ter sempre sua força exasperada pelo interdito, vê-se a todo tempo mediado, deslocado. Letícia gosta de ser possuída no lugar de Engraçadinha, e Engraçadinha gosta de assistir Sílvio que toma Letícia por engano. Após ser cúmplice desse pacto de amor triangular, Sílvio formula de si a si que: “O amor devia ser um casal e, ao mesmo tempo, uma testemunha” (p. 145). Pelo que parece ser imprescindível uma terceira presença que venha complicar, desdobrar o desejo. Naquele instante em que a ideia lhe ocorre, no capítulo 30, Sílvio está na loja de ferragens à espera de que o caixeiro embale a navalha que saiu para comprar.
Nos capítulos 30, 31 e 32, já irremediavelmente cúmplices, os três vão tentar repetir a noite anterior. Ainda no capítulo primeiro capítulo desta sequência, quando de madrugada Sílvio vai até o quarto de Engraçadinha, onde estão ambas à sua espera, o que há é silêncio e “uma solidão desesperadora” (p. 149). Há também um elemento de violência encarnado em Sílvio, pois é ele quem “acende a luz” e “abre a navalha” (idem). O capítulo se encerra por aposiopese, sem que nada mais aconteça, deixando o leitor, outra testemunha do desejo, também na expectativa. No capítulo seguinte, a suspensão é mantida até a metade, já que a narrativa começa pelo Dr. Arnaldo e suas meditações sobre a cunhada impossível. Quando Sílvio enfim adentra, estaca no meio do quarto, atordoado “com a violência do próprio prazer” (p. 152). Sílvio se acerca lentamente com a navalha em riste, enquanto por dentro cultiva a obsessão delirante da testemunha. Quando arma-se a cena — pois Letícia, atrás de Engraçadinha prende-lhe os braços para que Sílvio, que se aproxima, beije-a à força, enquanto Engraçadinha se regozija tanto pelo tabu do incesto, quanto pela violência imaginária da navalha —, o pai bate na porta, o capítulo se encerra e a interrupção súbita volta a salientar o interdito.
No capítulo 32, após Engraçadinha despistar seu pai, permanecem os três “calados e atônitos” (p. 155). Sílvio tem a ideia de levar Engraçadinha até a biblioteca, enquanto Letícia espera na porta. Quando lá estão e Sílvio “agarra Engraçadinha”, ela lhe recusa o beijo e lhe revela: “Sou tua irmã. Não prima: — irmã” (p. 157). Ele tem um acesso de riso, fica fora de si, e Engraçadinha permanece devaneando no divã, agora transida de medo e volúpia. Ainda assim, Sílvio se achega, “cai de joelhos” e sugere “queres?” (p. 158). Engraçadinha continua em silêncio e ele ordena “sem voz” que ela fique nua. A descrição do ato se faz por perífrase: “Imaginou [Sílvio] que eram dois monstros cegos que morriam de amor numa gelada floresta marinha” (idem). O incesto é metaforizado como algo monstruoso e inóspito, a cegueira é a sobrepujança dos instintos sobre a razão, e o amor resvala na morte. Quando na manhã seguinte Sílvio acorda e se mutila, a cena adquire uma dimensão ritual devido à sublimação da violência: “Ele feriu a alma da própria carne. Foi um golpe único e exato. Decepado, o cacho do sonho e da vida pendeu do filete vibrante” (idem). A metáfora do “cacho do sonho e da vida” transforma o falo em algo que oscila entre o material (o vegetal, símbolo da fertilidade e do desejo) e o imaterial (o sonho), conferindo-lhe um tom poético. Após o grito, o uivo de Sílvio, Dr. Arnaldo desanda até a biblioteca e, diante da hemorrágica cena, passa a clamar por lençóis (cf. p. 161). A consumação da paixão de Engraçadinha por Sílvio acarreta tanto a mutilação seguida da morte de Sílvio no hospital, quanto o suicídio do seu pai, Dr. Arnaldo, que a culpava por tudo.
Na segunda parte do romance, “Depois dos trinta”, vê-se que Engraçadinha construiu com Zózimo, uma vida apática, desprovida do ardor e euforia de sua juventude. Ela mantém viva na lembrança as noites de amor com Sílvio, enquanto sequer permite que Zózimo a veja nua. No subúrbio do Rio de Janeiro, onde teve seus filhos, Engraçadinha remói a relação de Durval — seu filho com Sílvio —, e sua filha com Zózimo, a moça Silene. Para Engraçadinha, eles repetem, à sua maneira, a dinâmica de esperas e olhares que caracteriza a relação amorosa, espelhando o passado na superfície dos dias, encenam mais uma vez seu amor por Sílvio. Ela observa e teme, ressabiada, como quem pressagia a iminência de outra catástrofe. Agora convertida ao protestantismo, ora em voz alta, bem como canta músicas de teor religioso.
A jovem Silene paquera Leleco. Este, junto dos amigos Cadelão, Cabeça de Ovo e Bob, pretendem armar uma arapuca num apartamento para que a moça se entregue forçosamente ao desfrute. O planejamento do encontro é feito sem nenhuma descrição explícita, e cabe ao leitor inferir o que vai acontecer: “— Mas olha. Vocês se escondem e só aparecem depois que eu…” (p. 227). Leleco acaba por mudar de ideia, e depois do cinema onde levara Silene para assistir ao filme Les amants, decide ir com ela sozinho ao Bar do Pepino, onde num quarto poderão ficar a sós pela primeira vez. No caminho para o bar, dentro do táxi, Leleco, com a mão pousada no joelho dela se utiliza de um eufemismo aliado a um diminutivo para lhe fazer um pedido: “— Deixa eu ver um pouquinho?”, “— Só um pouquinho” (p. 237). Em seguida, o texto não mostra nada, mas o leitor subentende, pela reação eufórica de Leleco que exclama “Que coisa linda!”, que Silene efetivamente ergueu sua saia.
Já no quarto a sós com Silene, ele teme ser incapaz de desempenhar com vigor o ato e, portanto, pede a ela que lhe diga palavrões. A narrativa esquiva-se da enunciação direita e salta, mais uma vez, para a reação de Leleco: “Silene vira-se e encosta a boca na sua orelha. Fala. Leleco exulta. Há, em todo o seu ser, uma feroz ressurreição” (p. 255). A consumação não é explicitada, há apenas gestos e efeitos: “tapa-lhe a boca”, “morde-lhe a mão”, suor, e o sangue residual do defloramento — “quase não sangrou!” (p. 260). Convém ao leitor, assim, preencher o ato, que é contornado pelas elipses e metonímias.
Haveria ainda muito mais a se discorrer sobre esse grande romance de Nelson Rodrigues, mas seguindo os passos do autor, vou me furtar a tudo dizer, esperando que o que foi dito até aqui seja suficientemente instigante para que o leitor se delicie, ele próprio, com um primor de texto em língua portuguesa.
Nota do editor:
* Asfalto selvagem foi reeditado em 2021 pela HarperCollins Brasil — saiba mais aqui.
Referências
RODRIGUES, Nelson. Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
Referências
RODRIGUES, Nelson. Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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