Um jardim fiel de materialidades em fé

Por Tiago D. Oliveira


Adélia Prado. Foto: Nana Moraes



Respondendo a um de seus seguidores nas redes sociais, Adélia Prado — que aos 89 anos se reinventa lendo poemas, lançando perguntas e dialogando com leitores a partir de sua obra — diz que um de seus salmos favoritos é “Pequei, Senhor, misericórdia”. Em seguida, cita: “livrai-me da memória do pecado em meu espírito”, reafirmando a voz inigualável dessa poética que constrói destinos. “Eu queria ter escrito isso, porque a memória do crime praticado é pior do que o crime. O perdão pleno é esse que nos livra da memória do crime.” A poesia, para Adélia, seria talvez um campo de reações e experimentos onde a fé se ancora diretamente nas diversas fases da vida. Vencedora dos prêmios Camões e Machado de Assis, a autora reúne reconhecimentos que contemplam “o conjunto da obra”, que se tratando de Adélia,  nunca deixa de surpreender.

A “paciência das tardes” pode sugerir uma boa metáfora para o percurso de leitura do novo livro da poeta mineira, recém-lançado pela Record. O jardim das oliveiras reúne 105 poemas inéditos e marca o retorno à poesia após um hiato de doze anos desde Miserere (2013). O livro reafirma lugares já consagrados na sua obra, ao mesmo tempo em que reinventa suas próprias fundações — heranças de uma produção iniciada entre os anos 1960 e 1980, sempre atravessada pelos temas do tempo, da vida e, consequentemente, da morte.

O jardim das oliveiras revelam a experiência universal em torno de três eixos centrais: o corpo, a espiritualidade e o cotidiano. Mesmo com o tom de angústia e vigília que o título evoca, a memória nos poemas não se encerra numa perspectiva desencantada; ao contrário, expressa uma força de expectativa que torna o livro ainda mais belo, sobretudo quando situado na trajetória de uma mulher que passado mais de meio século de poesia que continua se dedicando à sua escrita — e acreditando.

O livro de agora carrega a naturalidade da escrita madura, a que guarda a consciência biográfica e eleva a experiência humana a um registro espiritual. A poeta reafirma-se uma artesã de versos que ganham a argamassa do cuidado e da precisão. São testemunhos que compreendem que o quinhão de uma alma envelhecida está, muitas vezes, em recusar a tragédia pessoal diante do tempo que passa. A poeta refaz sua órbita na direção da verdade de uma voz que agradece pelos versos cansados, mas vivos, que exploram a liberdade feminina e a onisciência de uma linguagem que conhece seus alcances.

Um mesmo plano: o sagrado e o profano

A presença do sagrado é uma marca reencontrada desde o título até o último poema. O jardim das oliveiras — lugar bíblico em que Jesus passa as últimas horas antes da crucificação, aceitando o plano de sua morte e ressurreição — surge como evocação da solidão antes do sacrifício. Essa imagem permite também pensar a solidão do ato de escrever, da vida entregue à construção de uma obra poética. Escrever é um ato solitário, assim como rezar ao “meio palmo de luz” que acompanha a noite. A escrita se aproxima de uma conversa com essa instituição íntima da fé, que dá e ganha sentido. O profano, por sua vez, figura como experimentação contínua das coisas do mundo e da relação da voz com elas.

O poema “A caçadora” (p. 17) constrói um panorama de sentidos, explícitos e implícitos, sobre o gesto de testar essas duas esferas — o sagrado e o profano — em um plano de sobreposição. Essa justaposição amplia o alcance simbólico do título do livro.


Logo no início do volume, o poema de abertura convoca esse norte espiritual. O crucifixo envolto nas mãos da poeta, o chamado “Pange, língua” para o mistério da vida, e o reconhecimento das limitações humanas — “Nada acode à pobreza / da minha pouca valia, / a perfeição impossível.” (p. 11) — revelam uma voz que dialoga com o tempo e reafirma um campo temático de fé. A poeta veste-se das marcas da memória, que aqui não é apenas artifício, mas condição inevitável da existência.

Há uma intimidade sem cerimônia no modo como o poema fala com Deus. A naturalidade desse diálogo chega a ser um traço didático dessa linguagem tecida por Adélia: Deus pode ser vizinho, amigo, passante casual — um Deus possível, construído por uma fé diária. As constatações do tempo presente, com suas vicissitudes, são administradas por essa fé, como vemos no belíssimo poema “Indicação colateral ao uso de tranquilizantes” (p. 52):

Deixa, e os cabelos crescem.
O mato ao redor da casa
abrigará grilos e sapos.
As lagartixas em segurança
virão explorar teu quarto.
A paciência é espessa
como a massa do pão não levedado.
O pão não é paciência,
o ovo é.
O rio é paciência,
o mar não é.
Quero a que amadurece a fruta
e os embriões.
A paciência é fé.

Diante desse poema atento, Adélia compõe uma pequena ontologia da paciência. Ela observa o cotidiano sempre atravessado pelos temas que a acompanharam ao longo da vida, mas é no simples de cada dia que se constroem as bases de uma poesia viva, que se coloca não apenas como paisagem, mas como uma espécie de materialidade do cotidiano.

É perceptível, em sua poesia, a construção paulatina de uma epistemologia do diário — um lugar em que a observação do ordinário se alia ao gesto de presentear o leitor com versos amadurecidos pelo tempo, sem recorrer a abstrações ou transcendências grandiloquentes. A poeta cria uma metafísica fundada no que costuma ser julgado como menor: aquilo que está ali, crescendo despercebido, exigindo apenas um olhar próximo para revelar sua força.

Um cotidiano de revelação e comunhão

A poesia é em O jardim das oliveiras um campo singular capaz de converter o cotidiano em matéria de revelação: o desvelar de uma vida comum transformada em comunhão através da palavra — escrita, lida, rezada.

Com olhar sereno, a poeta conduz o leitor a um passo mais lento, convidando-o a perceber a densidade desse movimento, possibilitado pela própria poesia. Estamos diante de uma obra que atesta a importância de observar o ritmo do mundo e reconhecer a necessidade de ajustar o nosso próprio ritmo.

A “paciência das tardes” emerge como lugar de sentido que conduz a uma lógica espiritual compreendida apenas por quem reconhece a fé como fenômeno da vida. A fé deixa de ser mera crença e se torna também o tempo da espera — e o sentido dessa espera.

Este é um livro de dores mansas. Afirma a presença de uma mulher profundamente necessária para a produção de entendimento, fé e sensibilidade num tempo marcado por velocidades e descrenças. Talvez o ponto mais rico ao final da leitura seja justamente esse: continuar acreditando que a poesia é início, meio e fim. E, como quem crê, reconhecer o peso e a delicadeza do orvalho, as cores e o calor transmitidos num simples gesto de olhar.


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O jardim das oliveiras
Adélia Prado
Record, 2025
144p.


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