Das misérias humanas

Por Pedro Fernandes

Jan Havickszoon Steen



Quero relatar dois episódios que não sei onde os colocaria na estante dos acontecimentos que frequentemente nos assaltam. Mas, creio que ficaria bem no setor daqueles casos em que por baixo se escreve Das misérias humanas

Também não consigo agora descrever misto de sentimentos que me invadiu no momento das duas ocorrências - se pena, se tristeza, se impotência... se... 

O primeiro fato se deu numa saída de um sebo, certo dia - dia daqueles escolhidos para peregrinação em sebos. Pedi a uma vendedora de rua, um copo de água, que ainda, apesar dos altos e baixos da economia, se é vendido a cinquenta centavos. Revirei minha mochila e catei os centavos que tinha. Quarenta e cinco no total. 

Não tomei cara emprestada e joguei com a vendedora, pensando na facilidade da venda: - Aceita os quarenta e cinco centavos ou quer tirar de dez? Ela devolveu-me as moedas: - É melhor tirar de dez. É... E dizem por aí os economistas que o dinheiro anda curto. Não para aquela senhora. Dei os dez, recebi o trocado e saí matutando, o modo de filosofar nordestino: - Preciso registrar isso.

Aqui estou. Na sala sem paredes, na sala surda da web. E enquanto recordo, enquanto penso como classificar o ocorrido, a memória me traz outra situação muito parecida com essa.

Parece que esse tipo do que classifiquei de miséria humana tem virado moda. Desculpe-me se pareço arrogante. Não é nada disso. É franqueza. Incomoda-me particularmente essas mesquinharias que beiram a extremidade do absurdo. 

Pois não é que, novamente, um tipo desses inventou de atravessar meu caminho? Eis o segundo episódio para o meu muro virtual de lamentações. 

Desta vez, o fato se deu num supermercado. Entrei às pressas para comprar um iogurte no começo da noite. No costume de sempre comprar aquele produto que custa R$1,7, peguei-o e fui direto ao caixa. Mas ao contar minhas moedas dei de cara com R$1,6. 

E agora eu não tinha dinheiro maior para oferecer. Eu estava liso. Se não conseguisse comprar o iogurte com o dinheiro que eu tinha, não levaria. Já sabem, então, o que aconteceu. Simplesmente a atendente não me despachou a compra. Dei meia volta meio humilhado olhando a fila de pessoas atrás de mim e voltei à prateleira com o produto. 

Passei a ver isso como algo mais absurdo ainda do que o primeiro episódio, se entendo que, o lucro da vendedora de água fosse apenas aqueles cinco centavos que ela fez-me questão. 

Num supermercado, em que vigora aquelas contagens do nove (1,99; 2,99; 3,99 e por aí vai) e que agora vigora, para variar, a do oito, a do sete, a do seis, (1,88; 1,78; 1,68), que enchem a banca rota dos seus proprietários, que ao fim do dia, do mês, do ano, é suficiente para pagar todas as promoções bestas que propagandeiam e ainda sobra um caixa dois, eu pergunto, onde está a vantagem em não vender um produto apenas por causa de dez centavos? 

É possível  que na sangria do caixa, os dez centavos que faltar sejam descontados no salário da vendedora, mas, no fluxo contínuo do dia não sobraram mais que isso das frações de centavos de cada compra?

Deixo as pergunta para o leitor. Mas é triste este país onde vivemos, que, está assim, porque entregues a essas atitudes miseráveis, deixamos de fazer o nosso papel de, por exemplo, cobrar os centavos que os grandes diariamente nos pegam cada vez que compramos um produto qualquer.

A coisa se expande, é claro. Dos centavos dos supermercados saltamos aos milhões desviados, sonegados na coisa pública ou privada. Com esse texto faço as pazes com as duas vendedoras. As situações, bem viram, serviram para ilustrar a pior das misérias: a de deixarmos passar as mesquinharias que enriquecem uns espertos na arte de pegar o alheio. 


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