Dois títulos inéditos de José Saramago



Dois títulos recém-editados pela EDUFPA colocam luz aos leitores brasileiros sobre o trabalho de intervenção do escritor português sobre sua obra e sobre os principais temas sociais.


Recentemente a editora que tomou para si o direito de publicação da obra de José Saramago no Brasil, a Companhia das Letras, incorporou à galeria de textos do escritor português – entre contos, peças de teatro, crônicas e romances – dois textos que ainda estavam em outra casa editorial, Levantado do chão e Memorial do convento, ambos os romances pelos quais o nome do autor ganhou projeção entre os leitores e a crítica especializada. Mas, entre as quase três dezenas de títulos agora reunidos, podemos assim dizer, numa mesma casa, há ainda lacunas a serem preenchidas. Por exemplo, nunca foi editado por aqui aquele romance inicial, Terra do pecado; nem alguns volumes de crônicas como Deste mundo e do outro, Os apontamentos, As opiniões que o DL teve ou ainda as duas edições finais de O caderno; nem os volumes de poesia Os poemas possíveis e Provavelmente alegria...

Numa iniciativa louvável a Editora da Universidade Federal do Pará coloca duas pequenas pedras no espaço vazio dessa parede bibliográfica do escritor português em terras brasileiras: com anuência da Fundação José Saramago, chega às livrarias a partir de hoje, 30 de agosto de 2013, dois títulos já editados mundo afora e parte dele já de conhecimento público graças ao interesse da mesma fundação em disponibilizar esses textos (ou parte deles) na web. São os “Da estátua à pedra”, “Discursos de Estocolmo” e “Democracia e universidade”; os dois primeiros reunidos num só livro. Todos os textos estão para o gênero do ensaio e foram apresentados por Saramago em alguma ocasião dos muitos eventos em que participou na condição de conferencista.

José Saramago em Lanzarote. Foto de João Francisco Vilhena

“Da estátua à pedra” é uma variante de “A estátua e a pedra”, título que apareceu numa edição financiada pela Fundação José Saramago por ocasião da Feira do Livro de Bogotá já em meados deste ano. Trata-se de uma conferência apresentada pelo escritor na Universidade de Turim, em maio de 1998, meses antes, portanto, da recepção do Prêmio Nobel de Literatura. Era a conferência de encerramento para um congresso sobre cultura portuguesa, no qual estiveram nomes como o da professora Luciana Stegagno Picchio, uma das estudiosas da obra saramaguiana em Itália. Foi uma fala de improviso – contam. Durante cerca de uma hora, o romancista que mais tarde disse não ter predileção por falar sobre literatura, sentindo-se, possivelmente, muito em casa, falou publicamente sobre sua obra. Esta talvez seja a ocasião mais rara, porque pela primeira vez, o próprio escritor teorizou um esboço acerca de um projeto literário para uma construída, diga-se, sem quaisquer roteiros ou rumos específicos, apenas ao sabor das ideias.

Mais tarde, em 1999, esse discurso que fora gravado, foi transcrito e transformado em livro, mas numa tiragem exígua e bem trabalhada e com circulação restrita. A gravação havia sido obra de Pilar del Río. E o livro foi então publicado com textos da professora Picchio e de Giancarlo Depretis, quem fez a tradução do texto para o italiano. Na edição vinda a lume em Bogotá, os textos foram preservados tais como apareceram na edição italiana e foi acrescido um ensaio de Fernando Gómez Aguilera, autor responsável pela exposição A consistência dos sonhos e pela reunião de fragmentos de expressões saramaguianas em As palavras de Saramago.

A edição que ora se publica no Brasil é, digamos, um tanto mais fiel daquilo que repensou Saramago ao fazer uma revisão ao texto original de 1998: a pedido da Editora Aguilar, o escritor voltou ao texto para uma releitura a ser publicada na Espanha em 2010 sob o título de El autor se explica. Foi quando Saramago fez correções, acrescentou pontos sobre alguns romances escritos posteriormente e alterou, lembra Pilar no prefácio da edição brasileira, o título: “Ao revisar a tradução espanhola [José] adicionou à já gráfica imagem de A Estátua e a Pedra um elemento que tornaria mais compreensível ainda o sentido de suas palavras e de sua trajetória literária: Da Estátua à Pedra. No entanto, essa anotação feita de punho e letra se perdeu nos labirintos da comunicação virtual, e o livro, tanto na Espanha como depois em Portugal, saiu obedecendo ao modelo italiano. Foi necessário fazer uma busca nos arquivos para a edição brasileira... para encontrar, por fim, o título definitivo que o autor lhe dera. Agora sua intuição literária adquire plena compreensão”. 

O livro está dividido em duas partes: na primeira, é preservado o itinerário das edições anteriores, isto é, o prefácio de Giancarlo Depretis e o texto de Luciana Stegagno Picchio – que, aliás, cumpre lembrar, foi quem primeiro deu conhecimento à comunidade de língua portuguesa sobre o texto proferido na Itália num ensaio redigido para uma edição caprichada, ainda de 1998, da revista da Fundação Calouste Gulbenkian, Colóquio/Letras, então organizada pela professora Maria Alzira Seixo, uma das primeiras especialistas na obra saramaguiana. Somam-se a esses textos, o de Fernando Gómez Aguilera.

Na segunda parte, publicam-se dois outros textos de Saramago, ambos já em circulação na web e editados em livro também em 1999: “De quando a personagem foi mestre e seu autor aprendiz”, discurso de recepção do Prêmio Nobel de Literatura e a autobiografia que os laureados apresentam à academia sueca. No Brasil, o primeiro texto, por exemplo, apresenta-se publicado pela primeira vez em Dicionário de personagens da obra de José Saramago, trabalho da professora Salma Ferraz. A decisão da editora em agrupar este texto ao lado da conferência de Turim é adequada tendo em vista que aqui se constrói numa outra ocasião em que o escritor português reflexiona sobre o seu trabalho. Juntos compõem uma possibilidade de releitura da sua obra com um olhar retocado, dando vez a relação tão bem explorada entre Literatura e vida – e já aqui é possível ouvir o eco da frase saramaguiana “Tudo, provavelmente, são ficções, mas a literatura é vida”, frase-mote, aliás, para um rico texto escrito pela brasileira Eula Carvalho que se propõe a uma leitura da fase estátua da obra saramaguiana.

Para entender essa metáfora está aí uma recomendação. Na conferência de Turim, Saramago fez essa construção no intuito de traçar um itinerário sobre sua obra: num primeiro instante o escritor, a modo de um escultor, estivera ensimesmado com a materialidade bruta, a formação de seu campo de atuação, o desenho da escultura, o lugar histórico do homem e da elaboração de um sistema complexo a que demos o nome de sociedade. Em seguida, ele teria assumido a posição de esculpir e estar no interior da rocha: “A minha ideia, ou melhor, a minha preocupação, neste momento ou mais provavelmente desde sempre, ainda que nos últimos títulos se tenha tornado mais evidente, é considerar o ser humano como prioridade absoluta. Por isso, o ser humano é matéria de meu trabalho, a minha cotidiana obsessão e íntima preocupação do cidadão que sou e que escreve” – disse Saramago a certa altura sobre esse instante.

Foto de João Francisco Vilhena

Por fim, a edição de Da estátua à pedra compila um conjunto de fotografias do escritor português como um recorte sobre vários momentos importantes de sua vida pessoal e social. Vidas que foram vividas com bastante intensidade, tendo em vista a dedicação pessoal de Saramago para o debate problematizador das principais situações sociais que estavam ao seu alcance – a religião, a política, a economia, os modos de cerceamento das liberdades individuais, os disparates entre países e classes sociais, o respeito pela memória dos menos favorecidos pelas rolimãs da história etc. É necessário reforçar sempre o papel político e engajado exercido pela figura do escritor português porque não apenas presentifica seu perfil enquanto cidadão como reitera qual a função que é devida a todo e qualquer um que se dedica a arte, sobretudo num mundo em que, cada vez mais, multiplicam-se os gestos de insensibilidade e indiferença do homem para com seu semelhante.

Claro exemplo desse papel assumido e exercido pelo escritor português está ao alcance de quem se deparar com Democracia e universidade, o segundo título publicado pela Editora da Universidade do Pará. Aqui se apresentam dois textos produtos de duas situações conferenciais diferentes: em “Democracia e universidade”, o primeiro texto, Saramago, a partir da leitura do conto de Jorge Luis Borges, “Pierre Menard, autor do Quixote” reflexiona sobre termos como justiça, bondade, educação e utopia. Este o último termo, é necessário dizer, foi um dos mais batidos nas falas do escritor – e aqui não é possível esquecer quando Saramago recorre ao termo numa fala durante o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, aqui no Brasil, agora, pensando-o a partir do próprio romance do Cervantes, o Dom Quixote. Na compreensão saramaguiana a utopia não está além, como terão sonhado os nossos antepassados e ainda pensam muitos contemporâneos, ela está no agora, na necessidade de uma tomada de ação crítica e política o mais urgente possível a título de rever os lugares que temos galgado ao longo da história da humanidade e promovermos as ações para as transformações necessárias. É uma apologia a não-inércia da qual temos nos tornado produtores e simultaneamente vítimas.

Novamente ganha sentido aqui a compreensão muito própria do escritor para quem há esse tênue elo entre a literatura e o mundo, sobre o qual a pouco falávamos. Se para ele sua literatura não foi feita para agradar ou desagradar, mas para desassossegar, a literatura alheia também haveria de incorporar em sua forma essa dimensão por ele perseguida. Não é à toa, portanto, que em “Democracia e universidade” estejamos diante de uma reflexão que toma como ponto de partida a literatura, mas para buscar, compreensões (nunca completas, é bom que se diga) sobre determinado aspecto da sociedade.

A primeira vez que “Democracia e universidade” veio publicada em livro foi ainda em 2010 na coleção Con los cinco sentidos, da editora espanhola Foro Complutense. Na edição brasileira é compilado ainda o debate produzido logo em seguida a apresentação de Saramago em 2005 na Universidade Complutense de Madri. É nesse debate em que o termo utopia – que ocupa a parte final da conferência – ganha maior expressividade.

Foto de João Francisco Vilhena

O segundo texto apresentado nesse título brasileiro tem como título “Verdade e ilusão democrática”. Foi uma conferência redigida para um ciclo de palestras ocorrido em abril de 2003 em Santiago do Chile. A partir do clássico texto de Aristóteles, Política, o escritor busca compreender sobre o real lugar que pobres e ricos ocupam no interior da democracia. Aqui, ganha vez, aquilo que o escritor problematizou muito bem em várias situações e em momentos muito próprios de sua literatura. O trabalho de problematizador assumido por Saramago sempre pôs em pauta o sentido dos sistemas representativos tal como conhecemos, no caso aqui, a democracia: a participação ilhada de quatro em quatro anos para escolha de um grupo de representantes e o total esquecimento dos eleitores na elaboração de um espaço de participação no trabalho de gestão dos escolhidos e do esquecimento do povo por parte daqueles que foram eleitos. Isso é algo, por exemplo, que será posto em causa em romances como Ensaio sobre a lucidez e As intermitências da morte – duas narrativas limite em que o modelo de representação política é apresentado como um conluio de interesses particulares e gerido por uma ordem cujo poder está, de fato, integralmente entre às mãos do capital. Nesse sentido, o voto apenas legitima um sistema que se diz democrático, mas é regido por uma esfera econômica que está de costas para o bem comum do povo.

Enfim, o fato é que o leitor, diante desses dois textos agora publicados, estará diante de uma das faces mais ricas do escritor português: um escritor que reelabora a literatura e faz dela um complexo conjunto de parábolas que cumprem o papel de alertar sobre aquilo que vimos nos tornando ou poderemos ainda nos tornar se as intervenções não forem feitas a seu tempo. Há aqui um princípio profético, mas longe, é claro, de qualquer evidência religiosa, mas próximo de alguém que tem a clara visão reparadora, a de ver as coisas pela constante pergunta motivadora – por que isso se dá dessa maneira e não de outra? Estamos diante de um escritor que não buscou enfrentamentos propriamente ditos com os poderes legitimadores, mas com os discursos que os legitimam; sabedor de que tudo é intermediado pela linguagem e de que as mudanças para que de fato ocorram precisaram de passar pela mudança da linguagem, Saramago buscou colocar em pauta tais discursos modeladores a fim de desestabilizá-los, de levar o seu leitor a imbuir-se da mesma pergunta motivadora – por que isso se dá dessa maneira e não de outra? No instante em que nos adverte – é essa a função da parábola, instância a que Saramago transforma a literatura – nos cobra uma revisão dos modos de ser e estar no mundo.

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