21 poemas inéditos de Pablo Neruda

Tus pies toco en la sombra y otros poemas inéditos (Teus pés toco na sombra e outros poemas inéditos, em tradução livre) é o título do último livro de Pablo Neruda, publicado agora, quarenta anos depois de sua morte. São 21 poemas publicados pela primeira vez. Essa informação já havíamos partilhado por aqui em 2014. Dos poemas não há rascunhos ou outras variantes e a fundação que leva o nome do prêmio Nobel diz que o trabalho é resultado de uma minuciosa catalogação entre os manuscritos do poeta. São textos escritos entre 1956 e 1973 e, portanto, contemporâneos aos recolhidos em obras como Cem sonetos de amor, Memorial de Isla Negra e A barcarola. Os poemas inéditos da edição trazem ainda fac-símile dos originais (veja alguns no fim desta post). Num texto publicado no El País e escrito por Jorge Edwards, responsável por com Matilde Urrutia organizar edições póstumas como O rio invisível, que traduzimos abaixo, ele é taxativo em não concordar com o trabalho ora publicado e diz que Neruda jamais concordaria com uma edição dessa natureza.



MIUDEZAS NERUDIANAS

Pablo Neruda costumava dizer em seus últimos anos de vida que iam publicar “até suas meias”. Os editores o perseguiam e ele conhecia muito bem os ossos desse ofício, mesmo quando de seus contratos, antes de pertencer a uma agência editorial séria, coisa que só veio acontecer ao fim de sua vida, Neruda deixava-os entregues a uma desordem.

Depois de sua morte foram publicadas suas memórias em prosa, Confesso que vivi, editadas por sua companheira, Matilde Urrutia, e pelo escritor venezuelano Miguel Otero Silva. O método editorial foi muito discutível. Como o poeta cansado, enfermo e sobrecarregado pela função que então desempenhava de embaixador em Paris estava longe de haver terminado de ditar seu livro, os editores improvisados introduziram textos autobiográficos de Neruda dos anos cinquenta. E o resultado foi uma estranha colagem literária. Salva-se, porque, há que ter em conta que, o poeta já havia escrito, e a seu gosto, em poucos anos anteriores, sem interferências de nenhuma espécie, um texto mestre das memórias em verso, Memorial de Isla Negra.

Também há alguns livros póstumos que o poeta chegou a preparar e um de poemas escritos durante a adolescência, O rio invisível. Trabalhei com Matilde na preparação deste livro e o título é um fragmento de um verso seu sobre a poesia (um rio invisível que passa pelas veias do poeta) – este veio a lume pelas mãos de Matilde e de Jorge Edwards. Com Matilde pude ver que tínhamos abundante material em cadernos da juventude e seguimos um critério claro: só publicamos textos que o poeta já havia publicado em jornais e revistas.

Se houvesse seguido o mesmo critério com a coleção atual de poemas inéditos, o livro, com seu feio título, não existiria. Agora bem, o assunto impõe um problema interessante. Existe a noção muito difundida de que Neruda era um poeta espontâneo, de puro instinto, vegetal, como gostava de dizer José Bergamín, grande mal poeta, como disse Juan Ramón Jiménez. Parece-me que é uma visão antiquada, superficial.

Nos anos de sua chegada à Espanha, antes da guerra, o jovem Neruda, com Tentativa do homem infinito, com Residência na terra, era uma extraordinária voz de vanguarda, relacionada de algum modo com o surrealismo europeu. Juan Ramón o julgava com critérios acadêmicos e se equivocava. Basta haver conhecido bem sua biblioteca para compreender que Neruda lia e estudava com profundidade, com enorme paixão literária, a grande poesia de todos os tempos. Vi-o organizar algumas de suas edições de maneira perseverante e inteiramente coerente, com sentido sólido sobre a ordem interna do livro, com atenção posta em tudo, inclusive na tipografia, no desenho, nas ilustrações. Por exemplo, em vésperas de publicar Estravagario, o poeta colecionador (em sua vida e em sua obra) passava horas buscando desenhos de velhas edições de Julio Verne.

Se um autor assim deixava poemas seus sem publicar, era porque seu gosto pessoal, sua autocrítica, seu sentido da compreensão de cada coleção de versos os havia reprovado. Escolhia bem os poemas que publicava e esquecia os que mereciam ser esquecidos. Não era um autor que deixava escolher os poemas que caiam da mesa de trabalho ou os que eram extraviados entre papeis.

Nestes poemas inéditos há momentos em que parece que a inspiração vai se separar. Mas os poemas são quase sempre repetitivos e dão a impressão chata de não serem necessários.  Talvez agreguem alguma coisa para os estudiosos de sua obra, os nerudólogos, espécie humana enigmática. Em qualquer caso, os momentos líricos que despontam em torno de alguns destes versos estão longe – muito longe, me atrevo a dizer – dos grandes momentos da poesia nerudiana.



DOIS FRAGMENTOS DE POEMAS PUBLICADOS NA EDIÇÃO DE AGORA (TRADUÇÃO LIVRE) 

Descanse teu puro quadril e o ardo de flechas molhadas
estende na noite as pétalas que formam tua forma”

que subam tuas pernas de argila o silêncio e sua clara escada
passo a passo voando comigo num sonho

sinto que voas e então sou árvore frondosa para que cantes em minha sombra
Escura é a noite do mundo sem ti amada minha,

e apenas divido a origem, apenas compreendo o idioma
com dificuldades decifro as folhas dos eucaliptos

5
Pelo céu me aproximo
ao raio vermelho de teu cabelo.
De terra e trigo és e ao aproximar-me
teu fogo se prepara
dentro de mim e incendeia
pedras e farinha.
Por isso cresce e sobe
meu coração fazendo-se
pão para que tua boca o devore,
e meu sangue é o vinho  que te aguarda.
Tu e eu somos a terra com seus frutos.
Pão, fogo, sangue e vinho
é o terrestre amor que nos abrasa.

Ligações a esta post:
>>> No Tumblr do Letras deixamos o fac-símile dos arquivos ora tornados públicos.



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