Italo Calvino

Italo Calvino. Foto: Sebastião Salgado


Por que ler os clássicos? Se perguntou Italo Calvino ao longo de sua vida e elaborou vários ensaios sobre os autores que assim considerava, como Homero, Plinio, Ariosto, Balzac, Stendhal, Flaubert, Dickens... “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, comentou numa das muitas definições sobre esses livros imortais que “quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos”.

Ao lado desta interrogação, surge outra pergunta. Por que ler Italo Calvino hoje? Carlo Ossola, autor de Italo Calvino: universos y paradojas (Italo Calvino: universos e paradoxos, em tradução livre para o português) comenta que “Calvino é nosso clássico (italiano) do século XX por sua capacidade de eliminar o não essencial, tudo o que passageiro, a fim de obter assim o dom supremo da arte, a transparência”. Numa época dos excessos, então, o escritor seguirá necessário para o longo do século que estamos. Na mesma esteira, é possível definir sua obra como uma interpretação do mundo, do invisível e do invisível, do possível e do provável.

“A clareza de Calvino associada à sua busca pelo conhecimento é um modelo de literatura”, diz o filósofo Francisco Jarauta, quem conheceu de perto o escritor italiano em Paris. “No fundo, é um moralista no sentido clássico de Marco Aurelio, que situa a vida em seus justos limites”. Dessa compreensão, será possível o leitor pensar que um livro essencial de Calvino (tal como compreende Jarauta) seja Palomar, seu último título publicado em vida e um texto da maturidade que percorre a vida, a obra e o pensamento do escritor.

Palomar é o nome de um famoso observatório astronômico que durante muito tempo ostentou o título de maior telescópio do mundo. Ironicamente, Calvino constrói uma personagem com o mesmo nome, cuja característica está na capacidade de olhar, mas sempre como se um telescópio ao contrário, isto é, ao invés de voltado para a amplidão do espaço, está focado mais nas coisas próximas do cotidiano. É como se ele nos disse que as grandes questões do mundo e da existência também estão presentes em cada objeto que observamos, em cada cena que presenciamos, e tudo é digno de ser interrogado e pensado.  

O escritor morreu em setembro de 1985. Mas, sua figura e seus livros seguem, a julgar por Palomar, fundamentais para os tempos atuais. Parece que, ao longo desses anos o interesse pela literatura de Calvino, depois de disseminado fora de sua terra natal, tem ganhado cada vez mais leitores; basta olhar nas livrarias brasileiras para o projeto de tradução e reedição conduzido pela Companhia das Letras para verificar a natureza do alcance e penetração de sua obra.

Citamos Palomar, mas, possivelmente o escritor tenha ficado conhecido (e talvez seja sua obra mais vendida, logo) por As cidades invisíveis; depois a trilogia Os nossos antepassados escrita ao longo dos anos 1950 e composta de O visconde partido ao meio, O barão nas árvores e O cavaleiro inexistente (destes, o primeiro e o último certamente estão ao alcance da memória de muitos leitores). Por que ler os clássicos e Seis propostas para o próximo milênio devem findar a lista por ser dois livros bastante citados nos bancos dos cursos de Literatura.  



A obra completa de Calvino é muito extensa: uma dezena de romances, outra de livros de contos e vários volumes de ensaios, além das compilações de cartes e artigos. Nem está concluída; não faz muito tempo publicou-se Un ottimista in America (Um otimista na América, em tradução livre para o português), livro que reúne textos sobre sua experiência nos Estados Unidos.  Vinculado ao Partido Comunista, Calvino rompeu com a organização em 1956 em nome da invasão da União Soviética à Hungria e dos crimes cometidos por Stálin; na ocasião redigiu uma carta de renúncia que ficou mundialmente conhecida. Nela declarava a discordância com as ações do comunismo soviético e defendia um mundo comunista mais democrático; sempre defendendo o ideal da esquerda, a viagem aos Estados Unidos, se deu porque conseguiu ser liberado durante um semestre. Foi quando se encantou com Nova York e conheceu Che Guevara, líder da Revolução cubana, para quem escreveu o belíssimo tributo em sua homenagem.

E, por falar em Cuba, curiosamente Calvino nasceu nesse país, em 1923. É que seu pai, na época trabalhava como dirigente de uma estação experimental de agronomia. A família regressou a Itália dois anos depois. Primeiro San Remo e depois Turim, cidade que terá influenciado mais na obra do escritor. Numa tentativa de seguir a carreira do pai, ainda iniciou os estudos em Agronomia, mas não terminou: era o começo da Segunda Guerra Mundial. Calvino, de educação laica e antifascista, logo associou-se à resistência italiana contra o exército de Hitler; foi nesse período que se ligou à esquerda. Esta experiência lhe serviu para escrever seu primeiro romance, A trilha dos ninhos de aranha, livro publicado em 1947 e repleto do tom da fábula e da fantasia, tal como se lê em obras como Palomar e O visconde partido ao meio, e fortemente marcado pela estética neorrealista que surgiu na desolada Itália do pós-Guerra.

A trilha dos ninhos de aranha é um testemunho daqueles tempos duros, de guerrilheiros marcados pela incerteza, como Primo, ou pelo idealismo, como o comissário Kim. Mas o grande herói do livro não deixa de ser um personagem fabuloso, como toda criança: Pin, um menino abandonado e turbulento, provocador dos frequentadores de uma taberna (e da cama de sua irmã, que é prostituta). Pin rouba uma pistola para ingressar no mundo ameaçador e fascinante dos adultos, os quais o garoto teme, despreza e admira. Pelos olhos de Pin, a guerra é vista de baixo, por uma ótica ainda alheia a qualquer noção de ética ou ideologia, e por isso mesmo intensamente angustiada.

Italo Calvino. Foto: Ulf Andersen


Essa fase neorrealista de sua obra será breve; embora, seus laivos respinguem sobre toda obra, mais adiante, Calvino se interessará pela literatura fantástica. É o nascimento de uma escrita sensível, contida e profunda, marcada ainda pela aparência da fábula. É desse período a trilogia Os nossos antepassados. Na época, com o fim da Guerra, o escritor voltou a Turim e desistiu de concluir o curso de Agronomia para fazer Letras. Conhece nomes como Cesare Pavese e Elio Vittorini, dois escritores que serão muito importantes em sua evolução pessoal, ideológica e literária. O curso culminou com um texto sobre a obra do escritor Joseph Conrad e a publicação do seu primeiro livro; claro, já publicava intensivamente em jornais da época, depois dos incentivos do amigo Elio Vittorini quem fazia parte de uma revista universitária chamada Il Politecnico.

A viagem a Cuba, quando conheceu Che Guevara, foi propiciadora para que conhecesse Esther Judit Singer, sua tradutora argentina e com quem logo se casará. Depois disso muda-se para Paris, onde viverão treze anos; é um dos períodos mais férteis da sua carreira literária e onde convive com vários nomes importantes da cena literária de seu tempo, como o escritor Julio Cortázar, de quem logo se tornará um amigo.

Nesse período em França, o escritor afasta-se da fase fantástica encantado pelo pensamento do grupo de Raymond Queneau, do qual traduz As flores azuis e Georges Perec. É sua fase conhecida pela crítica como experimental ou combinatória. A obra dessa época é fortemente marcada pela memória da infância reavivada com a estadia em cuba; O castelo dos destinos cruzados, As cidades invisíveis e Se um viajante numa noite de inverno.

Para que o leitor tenha uma noção sobre esse período, basta observar o enredo de O castelo dos destinos, como exemplo: sobre a imensa mesa de um castelo – ou taverna –, as cartas de um baralho de tarô vão sendo viradas, compondo as múltiplas histórias das personagens ali reunidas. Cabe ao narrador interpretar as figuras enigmáticas que se sucedem, desentranhar delas as aventuras e desventuras de seus companheiros de fado. É uma narrativa, portanto, integrada a possibilidade de experimentação com a forma.

Uma das reuniões de Oulipo, grupo ao qual Calvino integrou-se quando viveu em Paris. A foto é de 23 de setembro de 1975 no jardim de François Le Lionnais. Estão nomes como George Perec e Raymond Queneau. Calvino é o primeiro da esquerda.

Paralelamente a estas duas fases ou tendências, existe em Calvino um tom moralista ou filosófico que está disseminado em diversos títulos; é um tom que culminará em Palomar, espécie de seu testamento, escrito quando já está em Roma, às portas da morte.

Assim, é que a crítica lê Voltaire, Montaigne, Borges e Cervantes como seus principais influenciadores, embora diga, a certa altura que nutre profundo amor por Stendhal “porque só nele a tensão moral individual, a tensão histórica e o impulso vital são uma mesma coisa: tensão imaginária. Amo Púchkin porque é transparência, ironia e seriedade. Amo Hemingway porque es matter of fact, undestatement, vontade de felicidade, tristeza. Amo Stevenson porque parece que voa. Amo a Tchekhov porque não vai más além de onde vai. Amo Conrad porque navega no abismo e não naufraga. Amo Tolstói porque às vezes estou a ponto de entender como ele se faz e, em troca, não entendo nada. Amo Manzoni porque até a pouco o odiava. Amo Chesterton porque quis ser o Voltaire católico e eu havia querido ser o Chesterton comunista. Amo Flaubert porque depois dele não se pode pretender fazer nada parecido com o que ele fez. Amo o Poe d'O escaravelho de ouro. Amo o Twain de Huckleberry Finn. Amo o Kipling de O livro da selva. Amo Nievo porque o reli muitas vezes divertindo-me tanto como a primeira. Amo Jane Austen porque não a leio nunca, mas me alegro de que exista. Amo Gógol porque deforma com precisão, maldade e medida. Amo Dostoiévski porque deforma com coerência, com furor e sem medida. Amo Balzac porque é visionário. Amo Kafka porque é realista. Amo Maupassant porque é superficial. Amo Mansfield porque é inteligente. Amo Fitzgerald porque está insatisfeito. Amo Radiguet porque a juventude nunca volta. Amo Svevo porque alguma vez haverá que envelhecer...”.

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