A literatura mascarada do Sr. Junichiro Tanizaki

Por Manuel Lavaniegos



Em 2009, a Companhia das Letras publicou reunidas num só volume as traduções de Dirce Myamura para duas novelas do grande escritor japonês Junichiro Tanizaki: A vida secreta do Sr. de Musashi e Kuzu, ambas publicadas pela primeira vez em 1931. Na ocasião, justificou-se brevemente que a edição conjugada reafirmava a predileção do escritor, dentre sua vasta obra, por esses dois títulos. Junichiro Tanizaki (1896-1965) é considerado por muitos como a pedra angular do romance contemporâneo no Japão ao lado de figuras decisivas como Mori Ōgai, Natsume Soseki, Ryūnosuke Akutagawa, Yasunari Kawabata, Yukio Mishima e Kobo Abe. Tanizaki tem contribuído com um papel de protagonista no dramático entrecruzamento da cultura e da arte do Oriente e do Ocidente, na modernização-devastação do século XX.

Dos muitos livros já publicados aqui no Brasil até o presente vale mencionar As irmãs Makioka, Voragem, Há que prefira urtigas, Amor insensato, A chave, Naomi, Diário de um velho louco; apesar de poucos, é possível falar sobre uma importante presença da obra do escritor por aqui; essa obra recebeu em 1949 o Prêmio Imperial de Literatura, a mais alta condecoração no seu país nesse tempo.

Agora, por que seriam, precisamente aqueles dois textos da década de trinta, Musashi e Kuzu, aos olhos de Tanizaki, os seus favoritos, num universo de prolífica produção literária? Que qualidades excepcionais encerram estas duas narrativas, que logo dialoga com uma atmosfera decididamente “arcaica” tanto em sua composição como em sua temática – bem construídas e delimitadas dentro das formas tradicionais antigas do universo expressivo, literário e artístico do Japão?

A vida secreta do Sr. de Musashi se desenvolve no Japão medieval do século XVI, em plena passagem guerreira da Época Tokugawa, em campos arrasados por sangrentas batalhas e palácios fortificados, entre guerreiros e cortezões, para os quais A história de Genji (século X) só vive como a evocação fantasmal de uma idade de ouro desaparecida. Kuzu, embora se passe em princípios do século XX, uma viagem de prazer pela paisagem da região dos Alpes de Yamato, se afasta sinuosamente como uma verdadeira exploração em busca das origens, cujas complexas e profundas raízes nos conectam com aventuras legendárias ocorridas nos séculos XIV e XV, vestígios que possuem tonalidades similares aos Contos de Heike, a outra grande obra narrativa do medievo japonês. Arcaísmo mas cheio de radiante vitalidade com a audácia penetrante de um escritor versado nas questões e excessos da Babel oriental-ocidental contemporânea, iminente àquelas sendas remotas desde o alto ou o abismo das formas. E neste jogo intempestivo de avaliações em que se centra o horizonte criativo, entre o remoto latente e nosso horizonte de incertezas?

Isto alude a tensão encerrada na paradoxal frase de Paul Valéry, “o mais positivo do novo é que responde a um desejo antigo”, que aqui aponta ao extremo inverso da elipse, onde o fio do desejo se reaviva em seus sedimentos. Vamos a essas duas narrativas ou “romances-ensaios”, que intentam uma sorte de genealogia poética relacionada com as ressurreições elaboradas por Akira Kurosawa nas imagens de seus filmes Trono manchado de sangue, O Barba-ruiva, Kagemusha – a sombra do samurai ou Ran.  

No prólogo do primeiro relato se apresenta seus termos precisos: “Este livro conta a história do senhor de Musashi, nascido no século XVI, no período das guerras civis, e conhecido por sua perspicácia e inflexibilidade. O senhor Musashi foi o líder mais destemido e cruel de seu tempo. As pessoas que conviveram com ele, porém, diziam que acalentava desejos sexuais masoquistas. Será verdade? Não sei se acredito ou não acredito nesses boatos fantasiosos, mas, se fosse verdade, seria o caso de sentir compaixão por ele. A história oficial não guarda registro quanto a suas inclinações sexuais, e a maioria das pessoas não tem informação alguma sobre o assunto. Recentemente, porém, ao examinar alguns documentos secretos pertencentes à família Kiryu, fiquei sabendo que tipo de homem ele foi na realidade. Senti grande compaixão por ele ao descobrir que era dominado por uma paixão obsessiva por bela e refinada dama. Como dizia Wang Yangming, é mais fácil subjugar um bandido nas montanhas do que dominar o demônio dentro do próprio coração. Ainda assim o senhor Musashi tinha a coragem de um tigre indomável, e, ao longo da história, são raros os que se podem equiparar sua habilidade de implantar a paz em seus territórios. Profundamente comovido por sua biografia, decidi narrar os detalhes de sua vida sexual sob a forma de uma novela história. Dei-lhe o título de A vida secreta do senhor Musashi. Rogo aos leitores que não cedam ao impulso de vê-la como uma série de invenções absurdas.”

Tanizaki, ao estilo do gosto dos autores chineses antigos, assina o prólogo com um pseudônimo – elemento que por alguma razão foi omitido pela tradução brasileira que se preocupa apenas em informar a data de escrita do prólogo, “Início do outono de 1935”. Além disso, todo este prólogo, no original, foi escrito em chinês. De início, o leitor tem ante si os elementos básicos que articulam esta história epopeica e de consagração do aguerrido senhor feudal; desconhecida e suspeita para a crônica histórica. Ao mesmo tempo que o fator não menos decisivo na estrutura do escrito, seu ambíguo leitmotiv, confessa sua vocação imperiosa, crítica, compassiva e levemente moralizante de revelar uma verdade escondida.

Simultaneamente o autor escamoteia com elegância sua identidade sob o disfarce de outra assinatura e na forma de um relato popular desmascara a vida sexual do Sr. de Musashi enquanto na mesma medida o estilo de sua escrita volta-se ao mascaramento. É sob a figura deste sagaz pescador, quem assina o prólogo, que mergulha na sua honrada pesquisa desenvolvida através da magia da narrativa do Sr. Tanizaki, e com profunda comoção incursiona pelas sendas perversas dos pares eróticos de sua personagem, e vai criando uma tensão refinada e cruel reveladora na dimensão do inverossímil, na extravagante beleza de um “êxtase petrificado”, mascarado, próprio da transfiguração erótica na criação poética, o que converte seu relato numa aventura de inquietante sedução.

À moda antiga das gestas de cavalaria, o título de cada capítulo anuncia ao que se referirá o episódio narrado, o que faz a narração estender-se mais do que ela diz. No livro 1 – “Sobre os escritos da monja Myôkaku, , ‘sonho de uma noite’, e os manuscritos das memórias de Dôami”;  “Sobre a armadura de Terukatsu, senhor de Musashi, e o retrato da dama Shôsetsuin” – Tanizaki aponta ao sentido indireto da recriação fictícia que leremos como uma hermenêutica de testemunhos reais, marcados por lapsos, de sugestões ocultas, através das quais por meio da sutil psicologia do olhar irá recobrando a vida da história clandestina. Palavras e imagens, qual utensílios teatrais, serão animadas ritualmente para delinear a gênesis de uma máscara.

Para penetrar na intimidade dos protagonistas – esse recinto da alma ignorado ou silenciado pelo discurso historiográfico oficial – as chaves são duas misteriosas memórias de serviçais da casa de Musashi. Pela natureza de seu emprego, uma camareira e um bufão, habitaram nos recônditos interiores do palácio, convivendo estreitamente com o Sr. Terukatsu e sua esposa, a dama Shôsetsuin.

“Sonho de uma noite”, escrito pela monja Myôkaku em seu retiro monástico, uma vez confirmada a queda da casa senhorial, interpreta com uma versão benevolente a torturada vida passional de seu senhor e as consequências que levaram seu casamento com Shôsetsuin, à maneira de um vívido inferno posto por Buda para refletir sobre o caráter ilusório dos mundanos desejos. “Os manuscritos das memórias de Dôami” serão os amparos para que se permita a narração da obsessão que secretamente embargou a vida do chefe guerreiro. Funcionam à maneira de um roteiro dramático ou uma partitura musical, como elementos parciais na totalidade posta em cena. E para acentuar ainda mais a qualidade teatralizada de sua prosa, antes de começar com a história, Tanizaki se detém numa apresentação dos protagonistas, como numa contemplação de duas pinturas que os retratam à maneira tradicional, vestindo o vestuário adequado para aparecer em cena. Mostra Terukatsu vestido com imponente armadura que denota o poder e categoria de um grande daimyo; enquanto que no outro rolo de seda pintado aparece o tipificado retrato de sua nobre esposa Shôsetsuin.

Como minuciosamente confeccionadas pelo pincel de um renomado artista de estampas Ukiyo-e, as figuras se delinearão solenes e elegantes qual atores do teatro ou Kabuki, com a sofisticada postura e vestimenta extra-dcotidiana de dramtis personae, do ator que porta a máscara pré-expressivamente pronto para transmutar-se em Shite, em personagem.

Como no filme de Kurosawa, Kagemusha – a sombra do samurai, na definição da cena narrativa de Tanizaki, tudo se estrutura no abismo dramático entre personagem e personificação, multiplicada desgarradoramente entre Eu-o-outro-e-o-duplo. Emocionante momento mágico da teatralidade que também é construída por Kurosawa – com a inocência colorida do segundo sonho de o jardim de pessegueiros – em Sonhos, onde os bonecos de madeira de coração de pêssego se transmutam em deidades dançantes da floração, no piscar de olhos onírico do menino aventureiro.

Já deste premeditado início, a psicologia metafórica do pescador Tanizaki toma-lhe suas primeiras presas.

A contemplação dos retratos, isto é, dos pentimentos depositados com desenvoltura pelo pintor – produzem um desequilíbrio inquietante nos retratados. Particularmente na blindada figura do Sr. de Musashi há algo que de dentro impregnado do suspeitoso ardor da representação:  

“Se alguém olha o retrato conhecendo o senhor de Musashi apenas pelo que está registrado nos livros de história, verá apenas o retrato de um herói, semelhante àqueles que representam Honda Tadakatsu e Sakakibara Yasumasa. Mas quem está ciente das fraquezas do personagem e investigou os segredos de sua vida sexual haverá de detectar (ou será apenas imaginação minha?) uma certa ansiedade por trás da fachada imponente—a angústia da alma oculta no interior da armadura ameaçadora—, e a imagem se revelará impregnada de inexprimível melancolia. O olhar fulgurante, por exemplo, os lábios cerrados com força, o nariz irado e a posição dos ombros inspiraria num espectador do retrato a mesma ansiedade produzida pela imagem de um tigre sedento de sangue. E mesmo assim, visto por outro ângulo, Terukatsu pode muito bem ser um homem que sofre de reumatismo lutando para suportar uma torturante dor nos joelhos. A armadura peitoral em estilo europeu, o elmo com os chifres altaneiros e a crista de Taishakuten também nos fazem pensar. Talvez o intimidante paramento tenha sido uma escolha deliberada para esconder a fraqueza interior. O efeito de tais acessórios, contudo, só contribui para deixar ainda mais desajeitado e artificial o personagem de postura rígida. A armadura de peito de pombo pareceria menos desconfortável se Terukatsu estivesse sentado numa banqueta em estilo ocidental, mas o fato de ele estar sentado de pernas cruzadas ressalta ainda mais sua inadequação. Nada indica a presença, por baixo da armadura, da massa muscular que deve estar ali, cultivada em duras batalhas. A armadura não adere ao corpo como deveria, e parece independente dele. Longe de proteger sua pessoa e instilar temor nos inimigos, mais parece um conjunto de grilhões infligindo-lhe uma tortura sem fim. Vista por esse prisma, a expressão do rosto denuncia uma angústia tocante, e a figura do bravo guerreiro coberto por sua armadura passa a evocar um prisioneiro a gemer desesperado dentro de sua veste. ”

Em contraste com o individualizado retrato de Terukatsu – preso em sua armadura predileta de couro estilo bárbaro e seu elmo de chifres altaneiros, que permite em sua fisionomia peculiar se adivinhar os tormentos íntimos e as baixas tendências que convulsionam o espírito, tal como o dragão demoníaco que exibe desenhado em seu peito – o estereotipado retrato da Sra. Shôsetsuin se ajusta hereticamente à purificação do modelo de beleza que uma determinada época considerava ideal. Seu proporcionado semblante une-se com todos os plácidos rostos das esposas de daimyos reclusas nos aposentos do palácio que dão para o leste. Suas características se fundem transfiguradas na incansável beleza de um arquétipo feminino doce e amargurado, mortalmente triste.

“A dama do retrato possui feições refinadas e regulares, bela com certeza, mas a figura não difere muito das de esposas de outros daimyos retratadas no mesmo período. Ela podia muito bem ser a esposa de Hosokawa Tadaoki ou a de Bessho Nagaharu. A impressão recebida pelo espectador seria literalmente a mesma.

O rosto pálido dessas beldades estereotipadas costuma ostentar uma fria indiferença, e a dama que nos ocupa não é exceção. Seu rosto é redondo e cheio, mas um olhar atento percebe que a maquiagem branca parece estar se desprendendo do rosto em alguns lugares e que a face está sem vida. O mesmo se aplica ao nariz orgulhoso e escultural. Sobre eles, os olhos—uma fenda longa e fina com pupilas brilhando como agulhas por baixo das pálpebras—dão uma impressão de refinamento, acompanhada de certa inteligência. Sem dúvida as esposas dos daimyos da época passavam seus dias monótonos enfurnadas nos aposentos mais recônditos de seus palácios, onde era raro a luz penetrar. Devido a isso, todas adquiriam aquela expressão característica.”

Esta refinada representação gráfica do retrato da Sra. Shôsetsuin é semelhante às impressões do estudioso polonês sobre o teatro japonês Jan Kott quando teve em suas mãos uma máscara Magojiro do teatro : “Estão talhadas em madeira de cipreste e pintadas. São muito frágeis, basta um arranhão para corromper o verniz. Estão rachadas, mas as riscas são uma rede de rugas sobre a carne viva. Há máscaras de deuses, demônios, velhos, jovens e mulheres. Todas sorriem, também as da raposa e do leão. Mas o sorriso de Magojiro é o mais desconcertante. Magojiro é a máscara de uma jovem mulher: as fissuras dos seus olhos são largas, estreitas e quase horizontais; sua testa é calva; tem as sobrancelhas altas com umas manchas pintadas que lhe dão um ar diferente. Os lábios carnosos estão entrecerrados. Os contornos da boca realçados.”

Com seu sorriso antigo, atravessando fronteiras e o tempo, a máscara de Mogaojiro é irmã da expressão dos Kuroi e as Kores, de cariátides e esculturas gregas e, delas, vê-se os lábios da Mona Lisa.

Ao capitar a gama diversa de expressões que se desenham na máscara, ao mudar o ângulo de luzes e sombras, Jan Kott observa surpreso: “Foi naquele momento que compreendi até que ponto era ilusório restringir a máscara a uma interpretação psicológica: como se se atribuíssem sentimentos humanos ao sorriso da raposa, ao ar sério ou o cenho franzido de uma coruja.”

A aguçada visão crítica sobre os retratados como se se tratasse dos acessórios de um ator – reveladas pelos testemunhos escritos da contemplação de Tanizaki, é matizada com a leve reflexão “Claro que o artista, ao produzir a obra, não teve essa intenção. Provavelmente não fazia ideia da vida secreta do nobre e limitou-se a pintar um retrato fiel.”

Nesse ponto o eco do ritmo – ao modo do golpe do tambor e o som da flauta no , das palavras “verossímil”, “virilidade”, “honestidade” e, aqui, “retrato fiel” por parte do artista – se impregna de uma tênue, mas sólida ambiguidade. O mais natural, de imediato, torna-se pintado; e poetizado, assim o mais abstrato e decantado passa a transcorrer radiante ao primeiro plano, como se se tratasse de uma exposição da realidade que aponta até suas profundidades, mas consistente e mais verdadeira.

E no mesmo sentido do observado por J. Kott sobre a máscara Magojiro; à medida que avança a narrativa o leitor se verá impelido a matizar suas noções de “psicologia” em relação à personagem e os olhares que o interpretam, o “masoquismo”, a “sexualidade pervertida” ou as “obsessões enfermas” de Sr. de Musashi. Pois este atavio de noções – que aparentemente delimitam a síndrome dos comportamentos do complexo daimyo ao contrário de como acontece na concepção do mundo do naturalismo psicologista do romance; ao invés de revelar os enigmas de seu caráter e desmontar a maquinaria de sua psique, as ações vão se carregando com a mais densa ambiguidade, com o resultado de que no final da história, o desnudamento da personalidade e sua fantasmagórica sexualidade se tornou ainda mais misterioso.

Em tudo isso, teríamos o direito de suspeitar de uma espécie de “psicologia estética” por parte de Tanizaki, um pouco no sentido ao que Nietzsche propõe aliando a psicologia à crítica filosófica, como em Além do bem e do mal, em que os símbolos se tornam apropriações do real e a máscara se mostra entidade mais verossímil. Porque “todo espírito profundo necessita de uma máscara, ou melhor, em torno de todo espírito profundo vai crescendo continuamente uma máscara, graças à interpretação constantemente falsa, isto é, superficial, de toda palavra, de todo passo, de todo sinal de vida que ela dá”.

Um novo gênero de filósofos está aparecendo no horizonte, dirá Nietzsche, e “tal como eu os adivinho, tal como eles se deixam adivinhar – pois forma parte de sua natureza o querer seguir sendo enigmas em algum ponto –, esses filósofos do futuro poderão ser chamados com razão, talvez também sem razão, tentadores.”

Nesse horizonte de tentadores, bem podemos incluir tentativamente nosso “pescador”, este Sr. Tanizaki que se lança sobre seu anti-herói, um macho samurai, até às profundidades arquetípicas da feminilidade, repetindo em sua escrita a predição de Paul Claudel ao observar as cenas do Kabuki: “porque sem dúvida a cena moderna ocupada pelas fascinantes disputas da psicologia amorosa, se fundirá sob o pesado coturno do herói ou do semideus”. Pois, para Tanizaki, o mesmo que para a estética simbólica do teatro e do Kabuki, o estudiosa da personagem consiste tanto na psicologia dos sentimentos como na anatomia das formas.


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