Ensaios para a queda, de Fernanda Fatureto

Por Pedro Fernandes



Este é o segundo livro da poeta Fernanda Fatureto; ela estreou em 2014 com o título Intimidade inconfessável (Editora Patuá). É preciso ler este seu primeiro trabalho a fim de compreender melhor a razão por que a poeta prefere ainda ficar ancorada, por timidez ou por um aguçado senso crítico sobre o que escreve, no vão das tentativas. É bem verdade que essa condição não se observa nos poemas, grande parte deles, acabados, muito bem lapidados, e que revelam a maturidade de uma escrita que se sabe segura; é por isso que o leitor mais atento irá questionar, atravessado os três momentos enformadores da obra, por que Ensaios para a queda?

Este texto, que não tem outro objetivo que não o de revelar algumas das melhores surpresas possíveis de encontrar numa primeira leitura, sem preocupação com a rasura de uma leitura mais profunda, tentará responder a pergunta que corta dos dois lados – para bem e para mal. Sublinhemos a segunda face que não é tomada neste caso específico como uma oposição da primeira. Algum poeta ou crítico disse, certa vez, que nenhuma grande obra existe se não devido as obras menores. E Fernanda Fatureto parece se guiar – mesmo que não saiba dessa opinião – conscientemente por essa linha como quem tem faro aguçado para o ardiloso trabalho com a palavra, essa navalha também de dois gumes. Tanto que escolhe colocar, como se num hiato, os poemas de menor força expressiva entre duas seções equipada por potentes sensores de imagem que só são dados aos que têm uma estreita intimidade com a poesia.

Pode ser esta uma opinião em parte esvaziada de sentido e produzida pelo calor da hora, portanto, sem a maturação amarelecida pelo tempo, única capaz de melhor revelar com alguma clareza as visões que são construídas em torno de uma obra, sobretudo de uma obra poética, cujo acesso é dado de maneira esparsa e, logo, marcada por uma diversidade de humores; então, é possível que as constatações aqui sejam vencidas ou mesmo datadas. A leitura de um poema é um gesto de conspiração em que entram em ordem o corpo, o sentido e o universo.

Mas, no caso específico de Ensaios para a queda sempre ficará por saber por que não pode ser esta uma opinião convincente se é a própria obra que assim sugere – e nela reside o mesmo traço de uma insegurança que se entrevê num título como Intimidade inconfessável. Embora, jamais possamos esquecer que o poeta é um mestre em armar teias e nelas fisgar com maestria esses leitores ingênuos ou apressados, sobretudo estes que se aventuram em revelar seu debater-se com as palavras.

A segunda parte do livro de Fernanda Fatureto consegue manter a mesma timidez que à primeira vista se mostra no título; chama-se justamente “Miragem”, uma projeção que se esvazia tão logo conseguimos nunca alcançar o que se nos mostra mesmo que permaneçamos na movência em busca do que se mostra. É aqui que o leitor, motivado pela entrada triunfal que faz com os poemas de “Travessias”, a primeira parte do livro, ficará preso à pergunta ou à dúvida sobre o que este texto tem se referido por insegurança poética. Onde está o salto que se insinua logo no primeiro poema: “Enquanto se espera sob o Sol a claridade cortante ł do sentido. / Realizo ensaios para a queda tal qual a última noite de uma estrela cadente.” (Temos a sensação que a poesia de Fernanda Fatureto prefere um verso mais longo que a edição não respeita; o primeiro verso aqui citado, por exemplo, mantém uma continuidade rítmica e melódica que só se encerra no ponto final, mas é cortado onde expressamos com um ł).

Neste caso, os poemas de “Miragem” sugerem uma implosão para com a unidade da obra; são meio para, um vazio, uma pedra, talvez a do sentido de obstrução da passagem para recordar uma só das múltiplas imagens que outra pedra, a mais famosa do conterrâneo de Fernando Fatureto, sugere. “O vazio é perigoso como qualquer tábua de ł salvação”. O vazio é tábua de salvação? Não para Ensaios. “Uma pedra sempre será uma pedra / Aguerrida, a provocar tropeços / Enquanto rola rio abaixo”, diz a poeta no poema seguinte. Mas o leitor não sairá desse trânsito de treze segmentos satisfeito. O lado ruim disso é que os esfomeados sairão da mesma forma, vazios porque buscavam na poesia seu alimento e o não encontra; precisará retornar ao lugar de “Travessias” para chegar a “Polifonia”, a terceira e última parte de Ensaios para a queda.

Mas isso, considerando o sabor da cilada de todo poeta, não é gratuito. O lado positivo, e começaremos a notar que este, por sua vez, prevalece sobre o repetido termo da insegurança, e eis então a presença do faro crítico de poeta, é que uma obra poética jamais deve ser um manjar do qual nos alimentamos até nos fartar; isso é atributo da prosa. E de um tipo específico de prosa. E Fernanda Fatureto propositalmente ainda estabelece uma dupla saída, como se eximisse do ruim dizendo, como a musa que se retira, “você que acreditou no meu poder e não viu que tudo são miragens”. Esta saída sutil e conquistada pelas beiradas responde por colocar leitor sempre em teste e aquilo que poderia ser um elemento negativo, vejam, logo, parece virar do avesso. Prossigamos.

Já em “Miragens” há momentos bons. O poema n.11, por exemplo, é um dos pontos alto do livro: “Mesmo a porta entreaberta não receberia visitas ł inesperadas. / A música ao fundo grita “don’t let me go” / Ainda sim não olhei para quem estava partindo: / Todas as pessoas partem para o mesmo lugar ł longínquo da memória. / Uma frase suspensa, / Mal entendidos trancados no fundo da gaveta, / Partituras incompletas e fraturas expostas ressoam / enquanto deixo você ir. / Olhar para trás me transformaria em pedra, / Como a mulher de Ló / Desacreditada de todos os momentos vividos. / fui ao mundo buscar a canção adequada para a ł queda, / O momento exato da decisão do abandono. / Corpo absorto no espasmo do desejo. / O mesmo corpo que pede para que fique, / Mas é traído pelo silêncio da despedida. / “Don’t let me go” enquanto ouso observar à ł distância / O movimento de seguir em frente / Ainda que sangre”. 



Em “Travessias” e “Polifonia”, este último mais que o primeiro – embora este título, aliás, responderia pela ruptura com o traço tímido de Ensaios para a queda – estão o melhor da poeta e reafirma o paradoxo que tentaremos destrinçar até o fim do texto. Os dois primeiros poemas da primeira parte, que sugerem ao leitor o leitmotiv da obra – note que a ideia de “queda”, por exemplo, se mostra no poema apresentado no parágrafo acima e perpassa toda a obra – preparam o leitor para uma travessia na e pela linguagem, o meio e o timoneiro do poeta no mundo desde os alvores da modernidade. Isto é, cair se mostra enquanto mergulho, voo, fuga dos aprisionamentos da escrita, dentro da escrita, mas tudo, então, finda em fracasso porque se é impossível conceber o poema fora da escrita. A poeta sabe disso e desiste, então, de ser mais uma voz metapoética. A inconstância, entretanto, encontra outras preocupações que não as das limitações do código escritural ou a insistência na repetição moderna do poema sobre o poema; a poeta percebe que a impossibilidade é por sua condição de fêmea punida ou porque todas as pessoas estão condenadas à mesma sentença: partirem “para o mesmo lugar / longínquo da memória”. Atribui um traço social, por assim dizer, ao termo motivador da sua obra.

A poesia de Fernanda Fatureto propõe então, ao menos, três dilemas: um, a travessia pela linguagem, o outro, a ruptura de uma condição que culturalmente e historicamente ainda influi na escrita, e, a possibilidade de subversão do mesmo lugar a que todos estão condenados. Esses traços encontram-se todos num poema que podemos considerar, mais que aquele n.11 de “Miragens”, o ponto alto deste livro: o poema n.5 da última parte: “Poderia a existência estar em jogo / No núcleo duro do tempo / Mas a humanidade optou por falar de amor & ł guerra. / Qualquer garotinho sabe que o herói mata mais / Do que beija a mocinha. / Hoje sonhei com Paris / E então veio a notícia dos tiros, / Pessoas mortas como na guerra de Bastille. / Aqueles sorrisos brancos lembram o sonho de uma ł família feliz. / Há tanta chama no mundo, baby. / Eu ainda quero encontrar com você ao redor ł do Sena. / A tragédia possui o tom mais vibrante / E Celan se jogou do alto. / Uma cidade linda cheira o espectro da morte. / Por que os belos são tão infelizes?”

Das várias simbologias recorrentes para o termo queda este título encerra a da finitude. Há um traço frio que colore todas as vezes em que o termo aparece na obra. Ao dizermos isto conseguimos, ao menos em parte, resolver o paradoxo provocado por Ensaios para a queda. A insegurança sobre a qual falávamos não se estabelece enquanto condição definidora dessa obra – se muito uma sincera timidez de quem sabe, se experimenta, se ensaia: primeiro, porque os poemas com melhor vigor superam aqueles de menor fôlego; segundo, os tais ensaios a que se propõe à poeta respondem por uma condição do sujeito num mundo marcado pela contínuo reacentuar da falha que é existir desde quando fomos expulsos do paraíso genesíaco.

A conclusão da poeta é amarga e arrebatadora – desconstrói a ideia do inseguro entrevisto no título: “De que adiantam guirlandas e guilhotinas se terei o ł último suspiro documentado pelo vazio?”, se pergunta a certa altura; “Não haverá trombetas diante do juízo final”, inquire no poema n.12, que conclui “Polifonias” e a própria obra. Sua tentativa sequer é a de tatear uma posição confortável para a queda, porque nenhuma o é. Mas há um porte felino no enfrentamento do fim – é o que nos resta: o próprio poema conforma uma espécie de legado indestrutível. Também ele é esse estágio de equilíbrio que nos provoca sempre ao impasse. Carlos Drummond de Andrade também começou assim – ou não é isso o que sugere um título como Alguma poesia? E de José Saramago, o poeta: Os poemas possíveis? A pergunta que fica é: estará um poeta, alguma vez, integralmente seguro de seus poemas ou isso é apenas para os modestos? Parece-nos que a segunda resposta: o bom poeta é aquele que se insinua e, na prática, é outro melhor que insinuado. Principalmente quando o que se insinua não é produto da modéstia ou do pedantismo.



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