Duzentos anos com “Frankenstein”

Por César Antonio Molina

Still Frankenstein, 1931.

Os românticos foram a Genebra atraídos pela estrela de Rousseau. Lord Byron escreveu seu célebre poema “O prisioneiro de Chillon” e dedicou a François Bonivard. Formando ângulo com o Petit Palais (um magnifico museu de arte contemporânea), a rua de Saint-Victor recorda um lugar onde esteve um antigo priorado construído na Idade Média. Em princípios do século XVI foi nomeado prior Bonivard a quem em 1530 os Saboyanos prenderam no castelo de Chillon. Solto em 1536 por seus compatriotas, escreveu uma história de Genebra cuja publicação foi proibida por Calvino porque não gostava de seu estilo. Byron resgatou Bonivard do esquecimento e suas crônicas finalmente foram publicadas em 1831.

Byron e os Shelley hospedaram-se em Vila Moynier que, durante anos foi o conhecido Hotel d’Aglaterre. Inclusive, em 1818, o escritor e político francês Benjamin Constant passou nele sua lua-de-mel com sua antiga amante, Madame Staël. Mas Frankenstein nasceu às margens do lago Leman, de frente para Genebra, em Cologny. A Vila Diodati é um amplo casarão com um grande jardim. Hoje está rodeada de outras casas de campo. Não está à margem do lago mas a certa distância de onde se tem uma grande vista.

Há uma pequena placa que diz “Lord Byron Pôete anglais auter du ‘Prisoner of Chillon’ habita la Villa Diodati en 1816 y composa le 3 chant de Childe Harold”. Nada de Percy Bysshe nem de Mary Shelley que foram vizinhos. Mas, um pouco mais acima, onde está a casa ou a vila, há um mirante onde se explica num cartaz a história daqueles escritores em relação a Cologny.

Shelley viveu na Suíça algum tempo e escreveu seu poema “Mont Blanc”. “Todavia brilha Mont Blanc na distância, / afirmando na terra sua imperial fortaleza / e majestade: luz múltipla; múltipla ressonância; / e muita morte e vida dentro de sua beleza...”*. Cologny, a eletricidade que dará vida ao monstro de Frankenstein. Shelley, Byron, ausente Keats, o mais jovem e logo a morrer, poetas errantes. Byron escreveu estes versos: “Não iremos, pois, já errantes / e a lua seu brilho esbanja. // Pois a espada vive agora embainhada, / e no peito se oculta a alma, / e o coração se detém a cada alento / e o amor vive sua hora de calma. // Embora para amar se fez a noite, / e logo regressa a hora diurna, // não iremos pois já errantes / à luz da lua”.

No verão de 1816 Shelley, Mary, William (filho dos dois) e Claire (a irmã de Mary) foram à Suíça, à Genebra, e se tornaram vizinhos de Lord Byron. Alugaram uma casa pequena próximo ao lago, do outro lado onde se estendia a Vila Diodati, a residência de Byron. Foi aí que os dois poetas se conheceram pessoalmente. Passavam muito tempo remando enquanto Mary se dedicava ao cuidado de seu filho e da complicada Claire, além das leituras. Nesses dias estavam por aí Polidori, o médico de Byron.

Mary Shelley (1797-1851) era filha de William Godwin e de Mary Wollstonecraft, dois escritores e pensadores progressistas. Shelley e Mary se conheceram através da amizade que este tinha com o pai dela. Mary tinha então dezessete anos e Percy vinte e um. Percy havia sido expulso de Oxford pela publicação com o seu amigo Hogg de “A necessidade do ateísmo”.

Rico herdeiro, mas com más relações com sua família, Shelley ajudava economicamente seu futuro sogro. Shelley, que estava casado, se separou de sua mulher em 1814, tendo dois filhos. Ela se matou dois anos depois e, nesse mesmo ano ele se casou com Mary, depois do verão na Suíça. Era 1816. “Havia me esquecido da leveza, inteligência e delicadeza de uma mulher culta”. Percy e Mary estiveram oito anos juntos até à morte dele, o que não impediu outros amores, platônicos ou não, de ambos com outras pessoas.

Curiosamente, um homem tão liberal como Godwin desaprovou a relação entre eles. Fugiram junto com Claire em 1814. Claire teria uma filha com Byron que morreria muito jovem igual aos dois filhos de Mary; dela só sobreviveu o terceiro, Percy. Viajantes pela Europa, dedicados à leitura e à escrita, com perpétuos problemas econômicos, sobrando gravidezes, envolvimentos amorosos, morte de filhos e familiares.

Numa das vigílias desse verão em Genebra, Lord Byron propôs que cada um deles (ele, Shelley, Mary e Polidori) escrevessem uma história de assombração [leia mais na post em anexo]. Assim Mary começou a escrever seu Frankenstein. “No verão de 1816 visitamos a Suíça e nos tornamos vizinhos de Lord Byron. Era um verão úmido e desagradável, a chuva incessante nos impedia com frequência de sairmos de casa. Um dos volumes de histórias de fantasmas, traduzidos do alemão para o francês, caíram em nossas mãos [...]. Cada um de nós escreverá uma história de fantasmas, disse Lord Byron, e sua proposta foi aceita.” Shelley se encantava pelos universos fantásticos, terríveis, pelo horroroso e este gosto compartilhou com Mary. De novo em seu diário, que no início foi escrito pelos dois e logo foi continuado apenas por ela, comenta que “durante uma dessas conversas, se discutiram várias doutrinas filosóficas e, entre elas, as que se referem à natureza do princípio da vida e também à possibilidade de que o dito princípio chegasse a ser algum dia descoberto e divulgado”.

Na imaginação de seu personagem monstruoso, em sonhos, como logo o Dr. Frankenstein observará, assim contempla: “era espantoso, porque supremamente espantosas devem ser as consequências de qualquer tentativa humana de imitar o assombroso mecanismo do Criador do mundo. O artista ficou horrorizado ante seu êxito e fugiu de sua odiosa criação”. Frankenstein se baseia no sobrenatural, no horror e na capacidade da ciência de flertar com o demoníaco. Romance gótico ou consumação do mesmo. Híbrido entre o passado da mesma e da nova ficção que vai abrindo os descobrimentos tecnológicos e científicos. Frankenstein é o doutor que cria o monstro sem nome o qual, finalmente, se apropria do nome do seu criador.

Estão unidos ambos por essa “paternidade” e relação “filial”. A condição de um reside no outro e vice-versa. Como comenta Muriel Spark, é evidente que esta dualidade está presente embora seja de uma maneira inconsciente “no generalizado erro de chamar o Monstro ‘Frankenstein’”. O criador se perpetua no Monstro. Frankenstein ou moderno Prometeu recebe o fogo da vida e se rebela contra seu criador. Quase o mesmo que faz o doutor Frankenstein ao transgredir a criação divina.

“Acaso não estou sozinho, miseravelmente sozinho?”, grita o Monstro. A rebelião de um e outro contra seus respectivos criadores é pela opressão divina, contra a ideia de uma divindade benevolente. “Tu me chamas assassino e, sem dúvidas, tu mesmo me destruirás”, diz ele ao Monstro. O mesmo poderíamos acusar os seres humanos, nos cria e nos destrói sem dar-nos qualquer razão. Esta crueldade se repetirá quando cria e desfaz a Mulher Monstro. Parte do romance passam-se perseguindo-se. Frankenstein morre de causas naturais enquanto sua criação lança-se com dor sobre ele. Ambos dão forma ao conflito entre a emoção e o intelecto; “a culminação da frustração emocional do intelecto se produz quando o Monstro assassina a mulher de Frankenstein”.

Depois, a perseguição histérica por parte de Frankenstein, de sua razão efêmera completa a história de sua loucura, algo que no relato só percebe o magistrado genovês, quem, quando Frankenstein lhe pede que prenda o Monstro, “se comprometeu”, disse ao solicitante, em “tranquilizar-me como uma babá tranquiliza um menino”, escreve Muriel Spark em sua biografia de Mary Shelley.

Na própria Cologny está a Fundação Martin Bodmer. Um rico industrial e comerciante criou a instituição há várias décadas para atesourar manuscritos, primeiras edições e outras obras de artes diversas. Três grandes textos em francês recebem os visitantes. Um, de Nietzsche. O segundo é de Borges. E o último de Mallarmé Edições indianas, chinesas, papiros do antigo Egito, tábuas cuneiformes, objetos antigos de escrita, manuscritos latinos depois de Cristo etc. A Bíblia de Gutenberg, manuscritos de Dante, edições príncipes do próprio Dante, Petrarca, Erasmo, Montaigne, Lutero, Villon, Ronsard, Rabelais, o Ulysses de Joyce, de Musil, Kafka, Michaux. Manuscritos de Breton, Céline, Genet, Claudel, Proust, as notas preparatórias para Madame Bovary, de Flaubert. Manuscritos de Montesquieu, Borges, Steinbeck, Faulkner, Melville e quantidade sem fim que ainda inclui Tolstói, Dostoiévski, Balzac, Gógol, Pushkin, Wagner. Shopenhauer, Nietzsche, Mozart, Novalis, Freud...


* A tradução é a partir da oferecida em espanhol no texto original, "Doscientos años con Frankenstein" publicado no jornal El País.

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