Correspondência trocada entre Sophia de Mello Breyner Andresen e Jorge de Sena entre 1959 e 1978


 Por Maria Vaz



“Filhos e versos, como os dás ao mundo?
Como na praia te conversam sombras de corais?
Como de angústia anoitecer profundo?
Como quem se reparte?
Como quem quer pode matar-te?
Ou como quem a ti não volta mais?”

Este poema foi escrito por Jorge de Sena e dirigido a Sophia de Mello Breyner Andresen na sua obra Peregrinatio ad loca infecta, corria o ano de 1969. Em boa verdade, as missivas publicadas resultam do esforço de Mécia Sena e de Maria Sousa Tavares, filha de Sophia. Com esta materialização de amizade vertida em verso e prosa celebra-se mais do que a poesia ou do que o diálogo levado a cabo por duas figuras incontornáveis do mundo da poesia em Portugal e de extrema relevância e importância indesmentível para toda a lusofonia.

Além da forma, da motivação da troca da correspondência, do tom muito mais informal e pessoal do que a formalidade de alguns poemas em que a erudição intelectual de ambos não os conseguia trair, o que salta aos olhos de qualquer leigo nestas cartas é a beleza imaterial que tem o gosto real e a apreciação mútua da sua autenticidade, sem conhecimento do grande público e longe dos holofotes da publicidade, das suas facetas enquanto pessoas imperfeitamente humanas mas que nunca descuraram dos seus ideais.

Oriundas de Londres, Santa Bárbara, Lisboa, São Paulo, Recife, Madrid, Roma, Madison, Granja: localidades que se cruzam na sintonia ou afinidade anímica que a distância física não acaba. Não existiam smartphones e as videochamadas no skype ou no Messenger não aqueciam corações à distância. Havia postais e o velho papel em branco em que a tinta formulava palavras que, no envelope, contrastavam entre um selo mais ou menos colorido e um carimbo dado à estampa.

Havia uma lealdade absoluta e um respeito inabalável entre ambos. E estas palavras subjetivas não hiperbolizam a realidade dos factos, nem os deduzem sem concreticidades onde a poesia assenta os pés na terra. Vários foram os poemas dedicados por Sena a Sophia e ao seu marido Francisco. Dedicou-lhe a obra Fidelidade, onde se podia ler “À Sophia e ao Francisco, com a maior amizade do Jorge. Esta “fidelidade” a tudo o que mais nos importa”. E o tudo era poético, mas também era uma causa social e política. O tudo era, ainda, imaterial e ninguém duvidava da sua existência. E ‘era’ porque não podiam ‘ser’.



Sobre essa fidelidade, escreve Sophia acerca de Sena: “A poesia não inventa outro mundo. Mas procura a verdadeira vida. E por isso Jorge de Sena definiu a poesia como sendo “a fidelidade integral à responsabilidade de estar no mundo”.

Quem lê a poesia resistente de Jorge de Sena pode não ver, à primeira vista, a sensibilidade exímia com que fala do amor. Com que fala da sua ausência. E com que a poesia parece reconciliá-lo e fazê-lo brotar de si aos outros, num exercício de transmutação do ódio que o fez rumar ao exílio – um exílio que, paradoxalmente, o engrandeceu em termos literários. A poesia de Jorge de Sena, para Sophia constitui também um grito de esperança: “essa esperança que nos tem, mesmo quando já não a temos, não é propriamente numa ordem imanente cuja justiça emergirá, mas confiança naquela pequena luz que no brilhar entre distância e treva resiste. A pequena luz de que nos fala um dos mais conhecidos poemas deste poeta. (…) E o poema que surge é a pequena luz que na escuridão resiste.”
Ao longo das cartas partilha estados de alma marcados pela transparência, em que fala das críticas e dos julgamentos à sua obra e, entre outros temas e desabafos, designadamente das diferenças culturais que sentiu entre Portugal e o Brasil, Jorge de Sena reitera sempre a sua demonstração de amizade por Sophia e Francisco. Entre outros temas expostos entre ambos podem encontrar-se a manifestação de apoio a Miguel Torga, feita por Fancisco e Sophia, para que ganhasse o Nobel da literatura, em 1960. Sophia também fala do desenvolvimento das suas obras e, às vezes, desabafa eufemísticamente sobre os problemas de trabalho do marido: “Eu e você podemos escrever poemas, ensaios, histórias. Ele não pode escrever o que quer, nem dizer o que quer, nem realizar-se como quer”.  

A vida de Sophia, sempre rodeada pela PIDE e pelo clima de desconfiança que iam tecendo em torno de si, escreve a Jorge de Sena, alertando-o para ter prudência na resposta, trechos como os seguintes:  “todo o ambiente no Congresso foi de nervosismo e de desconfiança e eu sem o Francisco ao meu lado (…) senti-me verdadeiramente só num mundo de intrigas que não é o meu.” (…)”Criaram à volta da Agustina (Bessa-Luís) um clima de suspeita e de inquisição”.(…) “Disseram-me que eu a devia abandonar pois o facto de eu andar com ela me comprometia. Como você sabe eu não sou capaz de abandonar uma pessoa só e que é injustamente acusada e perseguida na sua liberdade”. (…) “A minha atitude política é diferente da Agustina, como você sabe, mas defendo que a atitude dela deve ser respeitada porque acredito na liberdade. (…) E também acho que problemas tão graves não podem ser tratados senão com a mais grave da consciência e o mais profundo respeito pela personalidade de cada escritor.” Noutro desabafo escreveu: “a P.(ide) esteve em casa revistando e levou todas as suas cartas”.

As cartas compiladas têm a evolução de muitas obras de ambos, bem como convites para participações literárias. Também denotam o espírito empreendedor, no mundo da literatura, de Sophia e a forma como, cheia de zelo e entusiasmo, lutou pela consolidação das revistas por onde passava. Entre intrigas e problemas criados pelo contexto sociocultural e político que o país atravessava, que contrastava com a democracia que defendiam, estes diálogos assemelham-se a uma espécie de pequena embarcação que, em pleno mar, remava contra a maré.

Como escreve António Guerreiro na contra-capa do livro em que as cartas se encontram compiladas, “uma lição destas cartas é a de que a amizade e as afinidades não anulam as observações críticas nem obrigam à aprovação hipócrita”.

Lembramos que, com todas as dificuldades, Sophia foi grangeada com o Grande Prémio de Poesia pela Associação Portuguesa de escritores, no ano de 1964. Foi no tempo de democracia que lhe vimos atribuído o Prémio Camões, em 1999, e o Prémio Rainha Sophia, em 2003. Também foi agraciada com o Doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Aveiro, em 1998. Após o 25 de Abril de 1974, Sophia foi eleita pelo círculo eleitoral do porto para a Assembleia Constituinte pelo Partido Socialista.



Jorge de Sena era engenheiro civil, mas rendeu-se à literatura para, em 1942 publicar o seu primeiro livro de poesia, denominado “perseguição”. Deixou a sua vida de funcionário público na Câmara de Lisboa e rumou ao exílio. Foi convidado para ser professor de literatura numa cidade do Estado de São Paulo. O exílio foi longo mas constituiu o início de uma carreira literária de sucesso. A ditadura no Brasil obrigou-o, uma vez mais, a sair do país para ir viver para os Estados Unidos da América, onde passou a lecionar em Wiscosin e, mais tarde, na Universidade da Califórnia.

O centenário do nascimento destas duas grandes mentes da literatura portuguesa foi assinalado recentemente por um congresso internacional que juntou cerca de cem especialistas e estudiosos da obra de ambos os escritores e que teve lugar em Setembro, no Rio de Janeiro.

Quando Jorge de Sena faleceu, em 1978, Sophia dedicou-lhe um poema, onde também fala da amizade e das cartas trocadas entre ambos. Concluo, então, deixando-vos o poema de Sophia.

Carta(s) a Jorge de Sena

I
Não és navegador mas emigrante
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde

II
E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nossa vida

III
Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem —
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse
Trazias contigo um certo ar de capitão de tempestades
— Grandioso vencedor e tão amargo vencido —
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grave amizade
E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos

IV
E agora chega a notícia que morreste
A morte vem como nenhuma carta

In Ilha, 1989

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #596

Boletim Letras 360º #604

Boletim Letras 360º #603

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Bambino a Roma, de Chico Buarque

Kafka, o uruguaio