Vozes femininas negras

Por Fábio Roberto Ferreira Barreto


Umu Ada 49-99. Osinachi.



Sou uma Carolina
Feminino e poesia
Pobreza não quero mais
A caneta é meu troféu
Borda as palavras no papel
É tudo o que quero dizer…
(Tula Pilar)
 
 
As vozes femininas têm muito a dizer por meio da literatura; especialmente, as vozes femininas negras. A poeta, dramaturga e prosadora Miriam Alves, em entrevista à Revista de Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea (n.51, maio-agosto 2017), afirma: “Considero importante me dizer escritora negra brasileira. E não é rótulo. É uma atitude política”.

Questões atinentes ao feminismo negro são tão urgentes que, desde 1992, o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha é, anualmente, rememorado em 25 de Julho; aqui no Brasil, inclusive, desde 2014, instituiu-se o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, “a ser comemorado” (segundo o texto da lei) também na mesma data. (Faço um aparte e recomendo uma visita ao Portal Geledés, vinculado ao instituto Geledés da Mulher Negra, que desde 1988, atua na luta pelas mulheres e pelos negros. Além de ampliar os conhecimentos sobre 25 de Julho e ajudar a difundir seus ideais, pode-se acessar textos sobre temas relevantes para o Brasil nem sempre abordados pela grande imprensa – ou abordados por óticas superficiais.)

Em se tratando de literatura feminina negra, neste mês de março, é oportuno (re)ler Elizandra Souza. Em “O meu único dia de mulher”, a poeta¹ expõe o ponto de vista feminino acerca das contradições machistas:
 
Oito de março lembraram de mim
Mandou flores, tocou até tamborim.
Como presente de consolação
Além dos bombons ganhei cartão
Elogiou tanto o meu caráter
E me fez se sentir rainha
Fingiu esquecer que não cobiçava o meu corpo
Mas sim a minha carinha
 
Afirmou que sou bela por ser mulher
E disse o quanto sou guerreira de fé
E que sou capaz de vencer todas as barreiras
Sou forte e verdadeira
Na TV tantas homenagens
Que cheguei a acreditar
Até que enfim a igualdade está a reinar.
 
Nove de março que decepção
Pia cheia e toalha no chão
Pedi para tirar o prato da mesa
E quase levei um bofetão
Disse que o serviço de casa era minha obrigação.
Que mulher só prestava para cozinhar,
Fazer sexo,
Gerar filhos e amamentar.
 
Dez de março e a coisa piorou
Disse que sou feia, gorda
E não sabe porque casou
E ainda me chamou de burra
Se tivesse estudado
Pelo menos era culta
 
Os dias passam e fico esperando
Meu único dia de mulher.
Oito de março

A capacidade de Elizandra Souza para engendrar em versos a hipocrisia machista é elogiável. Embora o poema “O meu único dia de mulher” mereça uma reflexão literária à altura de sua qualidade poética, prossigo apresentando mais algumas vozes femininas negras – o texto é meu, mas as vozes são delas.

A poeta Jenyffer Nascimento, em “Carne de mulher”, aborda uma questão recorrente em textos de mulheres negras (mas frequente, também, em literatura contemporânea feminina): a hiperssexualização da mulher (aliás, é um dos pontos a que aludiu Elizandra em seu poema: “Fingiu esquecer que não cobiçava o meu corpo” [...] “Mulher só prestava para cozinhar,/ Fazer sexo”).
 
Nua em frente ao espelho
Me olho
Me observo
Me vejo
E me sinto mulher.
 
Nas ruas é bem diferente.
Mesmo vestida
Me olham
Me observam
Me veem
Como um pedaço de carne.
 
Quanto vale ou é por quilo?
 
Carne de primeira, de segunda?
Carne de mulher?
Carne de vaca?
Seria eu uma vaca?
 
Cadê a mulher que eu era quando saí de casa?
 
Não! Não aceito! Me recuso!
Eu não sou a carne mais barata do mercado.
A carne mais barata do mercado não é a da mulher negra!

Ética e estética se encontram, portanto, nas mãos de autoras negras. Opondo-se à objetificação do corpo da mulher – especialmente negra – e ao racismo de nossa sociedade, as mulheres negras têm levantado os olhos e as palavras. Aliás, muito além das sagazes críticas e denúncias, os textos de autoria feminina negra vêm afirmar que elas devem protagonizar suas histórias.

Em “Não vou mais lavar os pratos”, Cristiane Sobral explica poeticamente – para quem ainda se faz de desentendido – o poder da leitura e, por conseguinte, o empoderamento da mulher negra na sociedade brasileira:
 
Não vou mais lavar os pratos.
Nem vou limpar a poeira dos móveis.
Sinto muito. Comecei a ler.
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi.
Não levo mais o lixo para a lixeira.
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal.
Sinto muito.
Depois de ler percebi
a estética dos pratos
a estética dos traços, a ética,
A estática.
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros
mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante.
Sinto.
Qualquer coisa
Não vou mais lavar.
Nem levar.
Seus tapetes para lavar a seco.
Tenho os olhos rasos d’água.
Sinto muito.
Agora que comecei a ler, quero entender
O porquê,  por quê? E o porquê.
Existem coisas.
Eu li, e li, e li.
Eu até sorri.
E deixei o feijão queimar…
Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto.
Considere que os tempos agora são outros…
Ah,
Esqueci de dizer. Não vou mais.
Resolvi ficar um tempo comigo.
Resolvi ler sobre o que se passa conosco.
Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou.
De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi
você foi o que passou.
Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto.
Desalfabetizou.
Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira.
Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá e de lá para cá.
Desinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveis.
Não tocarei no álcool.
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler.
Depois de tanto tempo juntos, aprendi a separar.
Meu tênis do seu sapato.
Minha gaveta das suas gravatas.
Meu perfume do seu cheiro.
Minha tela da sua moldura.
Sendo assim, não lavo mais nada
e olho a sujeira no fundo do copo.
Sempre chega o momento
De sacudir,  de investir, de traduzir.
Não lavo mais pratos.
Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo.
Em letras tamanho 18, espaço duplo.
Aboli.
Não lavo mais os pratos.
Quero travessas de prata, cozinhas de luxo.
E joias de ouro.
Legítimas.
Está decretada a lei áurea.

Tenho acompanhado a produção literária de mulheres negras desde o início dos anos 2000. De lá para cá se tornaram mais intensas; na última década especialmente. Além da apreciação estética, a dimensão ética presente nas obras de autoria feminina negra é, a meu ver, de indiscutível pertinência. (Não que, nesse processo, não tenha descoberto e redescoberto Carolina Maria de Jesus, uma das maiores expressões literárias do século XX, e Maria Firmina dos Reis, uma pioneira em diversos aspectos, no século XIX.)

Para encerrar, listo quatro obras ao leitor de Letras para conhecer (ou conhecer ainda mais) autoras negras. Trata-se de livros de três antologias (de modo que o leitor possa apreciar textos de diversas autoras) e de um livro-tributo a Tula Pilar (no qual, além dos textos dessa grande referência da literatura negra nos saraus paulistanos, há diversas produções de mulheres negras).
 
1. Publicado em 2020, Narrativas pretas apresenta o universo do Sarau das Pretas. O livro reúne produções poéticas do “Concurso Literário Narrativas Pretas”.
 
2. Publicado em 2019, Pilar: futuro presente traz textos de Tula Pilar e de mulheres negras que escreveram sobre uma das pioneiras vozes negras nos saraus paulistanos.
 
3. Publicado em 2018, Mudas – falas são sementes em germinação é uma antologia do Slam das Minas. (Apesar de não trazer apenas textos poéticos de mulheres negras, é articulado por quatro “Minas Empoderadas”, sendo duas expressivas representantes do feminismo negro na literatura: Luz Ribeiro e Mel Duarte. Ademais, além de vários escritos serem de autoria feminina negra, a própria Luz Ribeiro e a Kymani, que têm textos seus publicados nessa obra,  destaque-se, já foram campeãs nacionais de Slam.)
 
4. Publicado em 2017, Olhos de azeviche é uma antologia em prosa (contos e crônicas) de “dez escritoras negras que estão renovando a literatura brasileira”.
 
Esta sugestão não pretende compor mais uma daquelas listas  obrigatórias que todos devem ler antes de morrer. Além de não ser entusiástico desse tipo de publicação, pois perpassa a pretensa ideia de que o que é bom para um leitor (que geralmente se coloca como autoridade no assunto) deve sê-lo a coletividade de leitores. Aliás, o processo de exclusão dos cânones perpassa por atitudes como as que subjazem tais listagens, nas quais alguém a partir de seu repertório dita o que precisa e o que não merece ser lido; perigoso para diversidade e, sem dúvidas, para inteligência. Ademais, na condição homem (hétero e branco) seria demasiado incoerente supor que minhas indicações pudessem constituir-se como regra para quem quer fruir textos de labor estético de autoria feminina negra.

O intuito, na verdade, foi compartilhar – de leitor para leitor – um ‘cadinho de leituras que me encantaram (em diferentes manifestações da prosa e da poesia – Slam e Sarau, inclusive). Por isso, variei os gêneros poéticos e os gêneros não poéticos –  bem como as esferas de circulação de textos – de quatro obras distintas nos últimos quatro anos. Angela Davis alerta que “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Posso dizer, seguramente, que as escritas femininas negras fizeram (e fazem) transitar em mim sentimentos e pensamentos variados, fazendo com que eu me movimente com elas para não perder o bonde da história.

Elizandra Souza, que também é editora do selo editorial Mjiba, criou a campanha “Salve uma autora negra. Compre seu livro!” Participe também! Aviso, todavia, que ao aderir, provavelmente, o leitor não salve apenas a autora, mas também a si mesmo...
 
Notas:

¹ A despeito de a tradição gramatical especificar o feminino “poetisa”, por razões históricas – sobretudo no que concerne ao silenciamento das vozes femininas – em circuitos de saraus e slams, geralmente, as mulheres preferem se intitular como “poetas”. Na perspectiva de ser coerente (e de concordar mesmo) com  o entendimento das mulheres, mantenho essa denominação em meu texto.
 

Comentários

Marcia Araujo disse…
Parabéns!
Excelentes reflexões.
As escritoras negras escrevem com a crítica das vivencias em forma poética.
E você torna ais evidente a mensagem que querem passar.
Professor Fábio disse…
Fico feliz por conseguir passar, em meu texto, um 'cadinho do que as produções femininas negras perpassam, para mim, em minhas leituras.

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #605

A vegetariana, de Han Kang

Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Para lembrar João do Rio, o ficcionista

Boletim Letras 360º #596