2024: O ano em que G. H. virou um palimpsesto

Por Renildo Rene



Texto, interpretação e imagem. Clarice Lispector esteve sempre fugindo da mensagem óbvia. O que escreveu e o porquê escreveu se tornou embrião dos seus significados — significados estes que são procurados nas suas ficções, crônicas, entrevistas, adaptações teatrais e cinematográficas. Do seu emblemático romance de estreia Perto do coração selvagem (1943) que lhe rendeu comparações a Virginia Woolf à reconhecida novela A hora da estrela (1977) reacendendo um debate antigo sobre a distância intelectual do escritor e os ditos problemas sociais, a escritora colocou no signo da língua a possibilidade da palavra de ser entendida de diferentes formas, em todo momento que sua obra e sua figura eram/ são reutilizadas por outrem.
 
Para A paixão segundo G. H., seu espetacular quinto romance, a incorporação desse mistério, em constante repetição nas últimas décadas, ocorre em frente aos nossos olhos. Publicado originalmente em 1964, o romance é a famosa causa da escultora carioca que, solitária em seu apartamento, se surpreende com o quarto da ex-empregada perfeitamente arrumado, com a barata e a essência do humano e com a matéria do indizível da linguagem, a priori. Em 2024, o escrito reaparece novamente na adaptação fílmica dirigida por Luiz Fernando Carvalho, que abre o leque para podermos entender G. H. no mesmo ângulo, porém sob uma roupagem diferente.
 
Passadas seis décadas, enquanto aquele não tão longínquo ano de início do regime militar se tornava o annus mirabilis de Clarice (expressão desenhada por Alfredo Monte na ocasião dos 50 anos de publicação, aqui no blog)1, o nosso corrente ano parece ser a evidência certa de que a “ferida/ abertura” feita por G. H. enquanto narradora do romance parece não nos abandonar.
 
Mas vamos ao filme. O roteiro do longa assinado por Carvalho em dupla com Melina Dalboni é a primeira escolha estética que reverbera na possível reação de quem assiste: não há nenhuma alteração no material base, ou seja, são as linhas originais do romance trazidas diretamente para a linguagem cinematográfica. Qual seria o trabalho em cima disso? O filme se torna uma adaptação ou reprodução? Arrisco-me a responder essas perguntas com a hipótese de que não provocar nenhuma mudança permite ao próprio roteiro visualizar como a vitalidade do texto literário pode ser capturada pelo cenário físico, e pelas expressões que a câmera pode capturar de dentro do universo ficcional.
 
Por isso, parece-me redundante acreditar que o espectador estará diante de um longo monólogo já que as várias cenas distribuem o texto primeiro com uma disposição original e decupagem bem cuidadas. O filme nos oferece três oportunidades de encontrar a escultora em seu apartamento. A primeira por meio da narração que altera a voz de G.H., seja quando ela acompanha a cena, seja para narrar de forma onisciente fatos anteriores ao momento em que se passam os eventos. A segunda escolha remete a uma espécie de quebra da quarta parede, quando a própria personagem narra se dirigindo ao público. Por último, é interessante observar que o filme procura pouco mostrar o personagem em diálogo consigo, reafirmando a solidão em que ela se encontra. Talvez gritos e sussurros sejam mais constantes, nessa parte, do que falas, o que evidencia uma escolha de trazer para a dramaturgia o desespero sentido na leitura do romance.
 
As recentes décadas também têm nos mostrado como o próprio texto de Clarice tem sido desvirtuado e viralizado sem nenhuma contextualização ou reflexão à altura que sua narrativa merecia. Isso gerou, por exemplo, a atribuição de frases soltas ou de imagens que não são de sua própria autoria. Sacrificou-se o próprio signo e seu significado para supervalorizar um mito de uma escritora.
 
Porém, a adaptação aqui discutida se faz muito feliz quando coloca esse texto como caminho e limitação. Caminho porque evita criar qualquer maneirismo ou esteticismo que não seja a partir do original, e aí cabe a nós, individualmente, avaliarmos se funciona ou não. E limitação porque tendo apenas o romance, o único avanço que o filme dará é no que o leitor pode agora ver, e não somente ler. Esse texto é, pois, uma nova variação do texto literário, expandido para o audiovisual.

Quando inaugura, em sua prosa romanesca, a narração em primeira pessoa, a autora estabelece um tipo de contato e de recepção em um nível de aprimoramento muito diferente do que o cenário nacional talvez estivesse acostumado. A confusão inerte que se dá pela procura do que é humano, essa experiência que vai perpassando toda a leitura, é projetada nesse estilo que dobra a forma como um personagem se compreende dentro da literatura. Em síntese, o intimismo e os limites da consciência tão caros ao século XX são alargados pela narradora de Lispector no seu próprio movimento de entendimento do que está entre o seu exterior e o interior.
 
Já em 1983, quase 20 anos após a primeira edição de A paixão segundo G. H. e em um Brasil próximo da abertura política, Carlos Daconti escrevia para o Diário de Pernambuco sobre Clarice2 sobreviver no Brasil sob o preço de uma moda — fenômeno constante para mistificar escritores no país, sem quaisquer contatos com a própria obra — que tira dela apenas o pretexto para alcançar popularidade em uma certa geração leitora. Concordo. Principalmente porque se alça o sucesso da figura e a possibilidade de compartilhar seus trechos, gerando uma pseudo-leitura. Ainda hoje, a obra precisa sobreviver contra o mar da ignorância e a “má-vontade” de aprofundar a discussão sobre G. H. Felizmente, a permanência do romance só reafirma o mistério da própria personagem ao investigar o mundo com propósito de descobrir o segredo “da vida, da beleza e da verdade”.
 
Para o filme, a compreensão dessa atmosfera se tornou crucial pela escalação de Maria Fernando Cândido. A atriz constrói uma relação com a obra clariciana e o seu próprio tom dramático para evidenciar que A paixão segundo G. H. tem seu próprio tipo de penetração quando vira produto no audiovisual. Ela é a peça-chave do filme: o texto escorre, e por vezes trava, em sua voz, exibindo outra variação do personagem ao telespectador.
 
Se, segundo a própria autora3, os movimentos de G. H. não são manifestações de um desabafo e sim da “eterna procura da coisa em si”, com Maria Fernando Cândido, o personagem agora é um corpo concreto de cinema que se esfarela na possibilidade de tentar entender essa busca do material humano pelos gestos, olhares, toques e imaginações. E esse tipo de presença audiovisual é conduzido por uma atriz que vai tentando criar vínculos com quem assiste. É possível achar a atuação travada, impactante, imagética, robótica, hipnotizante, e tudo isso faz parte da cadeia de emoções encenada para procurar dizer como aquela vida em solidão tenta entender sua natureza.



Aliado ao roteiro e a essa atuação está a composição da imagem. O filme é a disposição de cenas e quadros cinematográficos que trazem certa sutileza para os próprios elementos cênicos e como eles podem dimensionar uma mesma G. H. tão conhecida.
 
Duas sequências ilustram isso muito bem. Quando entra no quarto da empregada Janair (que havia se demitido um dia antes), Luiz Fernando Carvalho trabalha a montagem da câmera pelas impressões e viradas que pode haver entre o corpo da atriz-personagem e os elementos físicos. São manipulações da forma e dos objetos reais para tentar traduzir na linguagem cinematográfica um envolvimento que está na linguagem romanesca — e isso é bem-quisto pela sua interdependência enquanto filme. Quando olha para os desenhos de Janair, G. H. agora se adoece em um estranhamento resultado do seu comodismo enquanto elite social, em um contraste causado pela parede branca e limpa e os rabiscos pretos; ao divagar em torno da barata — no célebre momento da obra — ela vocifera um longo raciocínio desconstruído sobre a espécie humana e a religião recôndita da mulher, e tudo que temos é o corpo se debatendo no chão e o inseto quase-morto no armário.
 
A outra sequência é, na verdade, o conjunto de rápidos segmentos e de cenas alheias que aparecem ao longo das duas horas de exibição para acompanhar esse abatimento quase eterno. Partes como a de G. H. pulando para a piscina azul límpida parecem trazer o próprio ritmo da divagação — de quando a narradora diz estar começando “a amar o abismo de que sou feita” quando ela mesma mergulha nele. É uma espécie de tradução visual do pensamento, e que nem por isso deixa de ser menos óbvio. Há o direcionamento para as telas do cinema do próprio mergulho interno da luta do ser querendo abraçar sua identidade.
 
Enquadramentos que dão espaço ao rosto da escultora burguesa e constantemente se aproximam dela dá um sentimento de que a câmera tem uma função de estar à serviço do estilo refinado do diretor. Tal qual a escrita do romance, existe aqui um trabalho de linguagem por/ para Clarice. Ambos guardam mistérios e nisso está a formosura, sobretudo da escritora: a obra hermética se abre ao público para que seja debatida, discutida, sem um consenso, e sempre passível de novas interpretações.
 
Talvez Luiz Fernando siga um caminho mais esperto de se valer das mais de cinco décadas de discussões que o seu material tem causado, para produzir ele mesmo uma reflexão mais direta. Destina-se ao visual um tratamento sutil, porém direto, da distância que há entre G. H. e as não-reverberações do início da ditadura militar brasileira no seu espaço e, principalmente, da discrepância social entre a escultora e a empregada — grande objeto de estudo nos últimos anos, sob o mote do subtexto político na obra. Ora, como não pensar que há um impacto real dos close-ups de Janair nas cenas finais ou da escolha da música que encerra o filme? E que isso é um aproveitamento do próprio diretor em torno do que se fala da obra? Trabalho da imagem como última variação do texto de Lispector.



Olhemos o filme sob o filtro de adaptação e também de expressão máxima de como A paixão segundo G. H. tem pairado aos brasileiros (e demais públicos) neste ano. Logo em 2024, exatos 60 anos depois, o romance parece mais do que nunca querer chegar a nós pelo clima de instabilidade — seja política, pessoal, social, profissional — que a sua narradora parece querer organizar e amar. O mais interessante nessa destinação de uma literatura que nunca cessa de significações é que o texto de Clarice vai nos aparecendo pelas inscrições que nós, leitores, realizamos sobre sua obra, seja de bom-grado ou de forma equivocada.
 
Sobre o filme, prefiro acreditar que ele faz da primeira forma: o roteiro busca a tragédia de G.H.; a interpretação da atriz busca “o cego e o secreto” pelo expressivo e inexpressivo; e, o diretor também busca um modo de corresponder à realidade da voz e da linguagem claricianas. São todos elementos e técnicas que reescrevem a obra literária em uma lúcida e lúdica transformação audiovisual, para criar elos com o espectador. E um lembrete que o aproveitamento de um material de uma escritora do calibre de Clarice se dá pelo gozo que fazemos do original, sem perder contato com a autora quando fazemos nossa própria interpretação.
 
O diretor afirmou, na pré-estreia nacional, que não existe regra para fazer o seu cinema. Clarice afirmou em entrevista que às vezes elaborava inconscientemente. Não é uma correspondência total, porém é indício para uma discussão sobre como esse produto vai além de uma mera adaptação. A criação de um palimpsesto4 com o romance pois o ângulo de visão ainda recai sob a protagonista, porém o que se transforma são as projeções que se fazem em torno de sua figura e das possibilidades de sua identidade no contexto atual.
 
Restou a Luiz Fernando Carvalho recuperar A paixão segundo G. H. e avançar, em termos de linguagem cinematográfica, por sobre o romance. Ao mercado de distribuição audiovisual e a mídia que veicula Clarice, tornar o filme mais próximo do grande público e tratar de forma sábia a imagem da escritora. E, enfim, resta a nós, o grande público, aproveitar os dois, romance e filme, para novas inscrições sobre aquela revelação divina; inumana; humana.




Notas

1 Refiro-me a “1964: annus mirabilis de Clarice Lispector”. Neste texto, Alfredo Monte recolhe fragmentos e trechos da obra de Clarice Lispector para discutir o ano de 1964 para autora e as mudanças da sua linguagem literária, quando publicou A legião estrangeira e A paixão segundo G. H.
 
2 A coluna foi publicada em 1983 e está disponibilizada digitalmente pelo site da Biblioteca Nacional, sob o título de “O modismo tupiniquim e Clarice Lispector”.
 
3 As citações atribuídas a Clarice foram retiradas do próprio romance e da entrevista concedida, em 1976, ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. A conversa foi restaurada e disponibilizada aqui.
 
4 Entre este e outros temas, Pedro Fernandes analisa aqui o termo “palimpsesto” a partir de uma resenha sobre um romance de Elvira Vigna. Este texto e o de Alfredo Monte referido na primeira nota serviram de inspiração para construção desta nova entrada.
 
 

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