Osman, um anchietano

Por Eduardo Galeno



 
Uma citação do LP de 1968 de Caetano Veloso, a que abre o álbum:
 
“Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes, escreveu uma carta ao rei: tudo que nela se planta, tudo cresce e floresce.”
 
E é justo o Anchieta desse texto que era um ajuste entre formações de línguas distintas, onde tudo cresce e floresce (segundo Osman Lins, em 1978, num de seus ensaios mais contundentes). Espanhol de nascimento, indo defender o antigo Estado português no desespero da Contrarreforma, mas iniciando a nossa epopeia nas letras, José de Anchieta marca indubitavelmente, como figura, uma chancela que somente depois, na prova do século XX, iria subir às nossas cabeças.
 
A interpretação de Lins em relação ao padre é tão óbvia que fica difícil dizer. Mas, resumidamente, era essa: existe algo de messiânico em cada pessoa que escreve, em cada escritor, em cada tropel dos significados. Porque a circunstância seja diferente para nós — condicionados à esfera ultraliberal dos mares cibernéticos da pós-modernidade —, não significa que seja absolutamente distante. A situação de aproximação que Lins outorga em “Anchieta ou o Evangelho na taba” é a de permanência do que é essencial a quem está nas trincheiras de frente da cultura.
 
Mesmo que não diretamente, ele diz: existiu, nessa taba chamada Brasil, uma origem fascinante e determinante. A origem, sem ser propriamente a que queríamos, foi necessária. No primeiro momento, nos primeiros dois séculos de colonização, o turbilhão de mistura entre drama cristão moralizante, murmúrio tupi dos nativos [e a chegada da diáspora forçada de africanos], autenticou a expressão da prática letrada. O processo do colonialismo da união ibérica plantou nas artes, todo retalhado porque não existiu Idade Média para negros e índios, a questão mais que profunda de uma virtualidade cultural, entendida como “despertar da consciência” (termo meu) em Osman Lins.
 
O jesuitismo sempre esteve entre os que escrevem literatura. O gênero do auto não seria isso: o de perseguir um fim, uma moral, um subterfúgio retórico para as mazelas linguísticas do diálogo? Mais ou menos como acontece em um romance regional do século passado. Osman Lins conseguiu, na sua breve palavra, unificar um diapasão tecnicolor: o gesto jesuíta esteve conosco porque, justamente, em todas as situações estivemos querendo entrar em línguas estranhas e terras bárbaras. Ser catequista não é uma simples metáfora.

Isso é traduzir. Estamos a todo tempo fincando novas passagens de linguagem. Falar do Quinhentos colonial é falar de traduções. Apesar das convergências numa razão de Estado, subsidiadas pela organização de pacto entre os impérios e seus serventes (Antônio Vieira e Gregório de Matos e Guerra são uns dos exemplos), parece que Osman descobriu um furo. Esse furo é, como falei, a linguagem. Sujeitos do Verbo, que fazem e refazem o Verbo ecoar, são os mesmos que o ajudam a ganhar sua liberdade. O Verbo é, acima de tudo, livre. Ele notava que, em qualquer hora e qualquer lugar, estamos sempre Nele. Por isso tinha essa preocupação com variações pré-românticas, tempos nem tão perdidos.
 
Sim, o apontamento principal que aqui é levantado é a predominância de certa forma gestual anchietana: todos os anchietanos sonham com o Messias carregando a Palavra catequizando os gentios. Anchieta, um prototropicalista, dançando com os selvagens e lendo o poema sobre a virgem Maria [“Mas receia com a língua impura de cantar tuas glórias: inúmeras culpas carregam-na de manchas”] em simultâneo. Osman, jornalista e professor, mas um escritor e jesuíta!, um anchietano: falando para ouvidos estrangeiros ouvirem, para que as pessoas donas desses ouvidos se salvem.
 
Acho que a virtude desse momento é acertar no seguinte pleito: se a vocação de escrever é desvirtuada — porque, sei lá, o poeta Vinicius de Moraes tenha se tornado o cantor Vininha —, é porque ela já nasceu assim. Nossos escritores, nossos escritores brasileiros, estão sempre fazendo outra coisa. E isso é mais do que ok: eles precisam falar, mesmo em tom teatral, o que pensam, o que desejam em contextos adversos. A formação cultural do Brasil, e Osman sugere, faz com que isso seja super normal. Tenho uma opinião mais forte do que ele, entretanto, numa coisa: Anchieta não precisou fazer porque queria, mas porque foi puxado. Essa é a exigência de qualquer drama literário.
 
Isso me lembra a ponte que Adorno fez em relação à tradição: ser tradicionalista (obsessivo) é diferente de amá-la [a tradição]. Portanto, o que se esconde por debaixo dos panos do texto osmaniano é uma louvação daquilo que ganhamos filogeneticamente nessa reprodução de culturas e culturas, mas que não é inteiramente programado. Dessa forma, nós falamos do que seja tradicional, mas falamos igualmente de tradição atualizada, desgarrada, mutilada. Anchieta, jogados ao escanteio os mil asteriscos, foi além daquilo que os outros necessitavam e do que ele próprio pedia. O mistério de escrever reside aí. Podemos falar o mesmo ponto sobre Osman Lins e sua obra?
 

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