Eddington, de Ari Aster
Por Naief Yehya

A era da pandemia de Covid oferece uma ambientação ideal para inúmeras distopias e pesadelos apocalípticos, bem como uma excelente metáfora para uma variedade de catástrofes. O isolamento, os contágios, as máscaras, o vírus, a pausa na vida social e econômica, os embates ideológicos e a politização das medidas de controle e mitigação deixaram cicatrizes profundas nas sociedades, que ainda não se revelaram completamente.
Ari Aster lançou sua carreira com os perturbadores Hereditário (2018) e Midsommar: o mal não espera a noite (2019), que o consolidaram como um jovem mestre do terror. Depois desses vieram a frenética e edipiana “odisseia neurótica” (Aster dixit) Beau tem medo (2023), com a qual se lança ao humor negro mais volátil. Seu terceiro longa-metragem, Eddington, retoma a ironia brutal do anterior, mas se concentra na disfunção cataclísmica da política e da cultura estadunidense, particularmente após as fraturas no tecido social intensificadas pelo trauma global do confinamento.
A cidade fictícia de Eddington, Novo México (terra natal de Aster), com 2.634 habitantes, em maio de 2020 parece distante da epidemia que paralisou o mundo (zero casos de Covid até então), mas vivencia a controvérsia, a confusão, a ansiedade e as paixões que abalam as nações. Esta cidade marginal, lar de quase nenhum afro-americano e que faz fronteira, em meio a tensas disputas jurisdicionais, com o território indígena de Santa Lupe Pueblo, reflete as divisões causadas na sociedade estadunidense pelas determinações de distanciamento social e uso de máscaras. A controvérsia explode com o assassinato policial de George Floyd (um crime que deu origem ao movimento Black Lives Matter) e o culto trumpiano MAGA (Make America Great Again), alimentado pelo ressentimento e pelas ilusões de conspirações insanas ao estilo QAnon.
De um lado, está o xerife Joe Cross (Joaquin Phoenix), usando um chapéu branco de herói, que quer intervir o mínimo possível na vida dos cidadãos, mas se recusa a usar máscara e se envolve cada vez mais nas conspirações propagadas pela extrema direita. Do outro, está o prefeito Ted García (Pedro Pascal), que promove uma visão pluralista e tecnocrática da sociedade, o respeito aos mandatos impostos pelo governador e, acima de tudo, a construção de uma fazenda de dados para uma empresa de inteligência artificial, que promete progresso, empregos e um padrão de vida melhor, mas que certamente terá um imenso impacto negativo nas já escassas reservas de água e no consumo de eletricidade, bem como um efeito positivo em sua carreira política.
A visão conservadora de direita é laissez-faire, que rejeita qualquer noção de justiça social. A perspectiva neoliberal, com sua fachada democrática e progressista, serve aos interesses corporativos. Joe e Ted se enfrentam quando o assunto é o uso de máscaras, mas essa diferença não esconde o fato de que seus problemas são de natureza pessoal (anos antes, o prefeito teve um caso com a atual esposa do xerife, Louise, uma Emma Stone tragicamente esgotada). Joe acredita ser a voz da razão, alguém que consegue enxergar através da farsa da mídia, mas decide se candidatar à prefeitura postando um vídeo no Facebook. Assim começa um western noir da era do TikTok, uma época de revisionismo digital em que as evidências em vídeo raramente servem como testemunho, mas sim como um ataque para descontextualizar, desacreditar, humilhar, incriminar e provocar, como parte da fabricação de realidades alternativas.
Eddington é um modelo de um mundo pandêmico conectado pelo Zoom, atormentado por informações confusas e distorcidas (as científicas e políticas), por campanhas virais, euforia (a promessa de riqueza infinita do Bitcoin) e medos tecnológicos (a ameaça dos drones). Aster acredita que os habitantes, independentemente de suas crenças, têm em comum a compreensão de que as coisas não estão certas. A teatralidade tanto da esquerda quanto da direita corroeu a realidade, a primeira por meio de sua justiça social performática, que se traduz na estridência teatral e na autodesprezo racial dos jovens manifestantes, enquanto a direita, desconfiando de tudo, torna-se tolamente crédula.
Aster centra sua visão na perspectiva frustrada, angustiada e caótica de Joe, que mora com Louise, que não o deixa tocá-la, e de sua sogra, Dawn (Deirdre O'Connell), que passa dias e noites “investigando sozinha” as mentiras e falsificações do estado profundo (Deep State), o impacto de deep fakes e outras conspirações. Mesmo antes da pandemia, a realidade havia começado a deixar de ser uma certeza compartilhada por pessoas de diferentes ideologias e se tornar uma questão de crença: “Não acredite no que você vê com seus próprios olhos”, disse Trump (que não é mencionado aqui). A realidade é uma experiência algorítmica governada por plataformas digitais, é uma perspectiva pessoal midiatizada que moldamos com nossos likes e reposts; e ao expressar nossas preferências, nos entregamos a poderosos manipuladores que espionam, mercantilizam e exploram nossos gostos e opiniões.
Na passagem mais controversa do filme, um avião particular de luxo transporta agentes armados e mascarados (usando máscaras N95), cartazes de protesto e apetrechos “Antifa”. Dependendo de como você os encara, podem ser infiltrados governamentais encarregados de sabotar protestos com violência ou, para a mentalidade de direita, agitadores profissionais da extrema-esquerda elitista e globalista (que é um código antissemita para o financiamento de oligarcas como George Soros). A partir dessa cena, a representação da realidade de Aster se funde com as conspirações paranoicas da direita que infectam a mente perturbada e febril de Joe. Esses “terroristas comunistas radicais” vêm para destruir a ordem, que Joe já havia destruído de qualquer maneira. Após o caos, o massacre e o colapso social, as peças são rearranjadas e os obstáculos à fazenda de dados são eliminados da maneira mais conveniente para a corporação de alta tecnologia que é a principal beneficiária. Elas provavelmente manipularam ambos os lados, criando uma narrativa polarizadora a serviço de cada um.
Não há lições morais nem nada que não tenhamos visto até a exaustão, mas esse caleidoscópio de desencontros, credulidade, mentiras, medo e ódio reafirma a impossibilidade de saber a verdade, o domínio da impunidade e a impossibilidade de voltar atrás. A burla do diretor vale para os dois lados, mas, como ele mesmo aponta: a diferença é que, enquanto a esquerda pode parecer absurda, hipersensível, solene ou hipócrita, a direita hiperarmada está disposta a assassinar qualquer um que não consiga convencer.
* Este texto é a tradução livre de “Eddington, de Ari Aster”, publicado aqui, em El Cultural.
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