Diálogos com os dias: crônica um
Por Tiago D. Oliveira
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Raoul Dufy, O baile popular (detalhe) |
Debaixo de uma amendoim-acácia
E há que se viver, mesmo sem conserto,
porque a vida é sempre tentativa.
— Carlos Drummond de Andrade
Já é manhã de segunda-feira. Os carros seguem em direção à escola e eu sigo em outra. Entro na Filemon Andrade, sob os galhos de uma amendoim-acácia que se estica para tocar em minhas mãos. É uma manhã de primavera e me ponho a lembrar da madrugada anterior.
Está cada vez mais difícil aceitar um convite para sair à noite. Se for no meio da semana, chega a parecer quase uma ofensa, uma provocação. Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo que contar os dias para que chegasse logo a sexta-feira era o que hoje podemos chamar de “dar um scroll”.
Toda vez que preciso muito sair, ceder às convenções de uma vida minimamente social, coloco-me a pensar nos moradores de Tristão da Cunha, um pedacinho de terra no sul do oceano atlântico, onde moram pouco mais de 200 pessoas. Um dos lugares mais remotos do mundo. Fico ali refletindo, até que vem o golpe de misericórdia: E se você vivesse lá, pai? Aí já viu, não tem jeito, eu coloco uma calça jeans, uma camiseta preta de banda (como se os tempos idos pudessem me salvar), aquele sapato leve e vou. Mas, ultimamente, nem Tristão da Cunha tem dado jeito.
Li recentemente que a técnica mais usada para afastar um asteroide do risco de colisão com a Terra é a Deflexão, conceito comum no campo da física para nomear o ato de desviar a direção de uma corrente ou fluido. Os cientistas explicam a técnica do impacto cinético, que nada mais é do que enviar uma aeronave para colidir e alterar a rota do astro. Mudar o curso tem a ver também com colidir.
Então eu fui e levei painho comigo. Estava naquela de que qualquer coisa, jogava ele no meio e dava uma direta dizendo que tinha ficado tarde e precisávamos ir para ele descansar. Era a técnica do impacto cinético perfeita, adaptada, mas eficaz. O problema é que no meio da noite, depois de um “vou ali e já volto”, procurei meu pai e ele estava ao lado do DJ, pedindo música.
Daí por diante foi só ladeira abaixo. Trenzinho. Fotos. Dancinhas. Promessas e mais fotos. O povo já tinha lembrado dele de nossa infância e ninguém mais queria desgrudar. Meu plano tinha ido por água abaixo. No meio do desconcerto havia beleza. Ele estava feliz. E enquanto as pessoas dançavam e o alento da cena crescia, minha reação desacelerava. As letras pairavam sobre a tela, e o próprio Drummond saía de uma das trupes meio que sorrindo e me dizia de frente, “A vida é um lindo erro que não tem conserto.” E de repente tudo ficava mais claro, como se estivéssemos em um filme.
Aceitar um convite para sair à noite é cada vez mais difícil, mas foi nesse que eu compreendi a mensagem. Entendi que não conseguiria mudar a frequência tão facilmente. Muitas vezes um bom livro basta, mas nesse caso, não. Não naquela noite. Ela foi um daqueles momentos que se apresentam como uma chance, e não tinha sido eu que mudara o curso, era o curso que me pendia.
03 de outubro de 2025
03 de outubro de 2025
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