Os novos livros de J. D. Salinger



Por Cristian Vázquez

J. D. Salinger em sua mesa de trabalho. Cornish, New Hampshire. Arquivo: Biblioteca Pública de Nova York


1. Digamos logo desde o começo: não temos ideia sobre quantos nem de como serão os novos livros de J. D. Salinger serão, cuja morte terá uma década neste 2020. O que sabemos pelo menos é que haverá novos livros. Isso há muito foi assegurado por alguns de seus biógrafos e só recentemente confirmado por Matt Salinger, filho do escritor, que ficou – junto com Colleen O’Neill, a viúva – encarregado de seu legado.

A parede de silêncio “oficial” que pairava sobre o trabalho não publicado de Salinger começou a ruir no ano passado, após o centenário do escritor, nascido em Nova York em 1º de janeiro de 1919. Em entrevistas concedidas a mídias como The Guardian, El País e o canal da Penguin Books no YouTube, Matt disse que seu pai continuou escrevendo todos os dias, cerca de oito horas por dia, ao longo de sua vida, apesar de não ter publicado nada desde que sua extenso conto “Hapworth 16, 1924” ocupara quase toda a edição de 19 de junho de 1965 da revista The New Yorker.

Enquanto Salinger estava vivo, muitos acreditavam que, se ele continuasse escrevendo, teríamos notícias sobre nas livrarias logo após sua morte. No entanto, isso não aconteceu. Uma biografia de Shane Salerno e David Shields e publicada em 2013 – três anos após sua morte – alegou que Salinger havia deixado cinco livros concluídos: uma coleção de contos intitulada The Glass Family, outra sobre a família de Holden Cauldfield (o protagonista de O apanhador no campo de centeio), dois romances ambientados na Segunda Guerra Mundial e um “guia” do Vedanta, a corrente do hinduísmo a que o escritor fora adepto nos últimos dois terços de sua vida. Segundo os biógrafos, esses livros seriam publicados entre 2015 e 2020. O problema das profecias de curto prazo é que elas podem ridicularizá-lo muito rapidamente.

Dez anos após a morte de Salinger, ainda estamos esperando. Segundo Matt, a quantidade de material que seu pai deixou é tão grande que sua transcrição e organização representam um trabalho de anos. Então, quando os novos livros de Salinger começarão a ser publicados? “Em não menos que três anos e no máximo dez”, respondeu o herdeiro a Penguin. Provavelmente cinco ou seis. Mas não posso garantir. O que posso dizer é que estamos fazendo o mais rápido possível.”

2. É claro que o fascínio gerado por Salinger excede em muito o literário. Breve revisão biográfica: em 1951, aos trinta e dois anos, publicou O apanhador no campo de centeio, seu primeiro e único romance; o trabalho capturou, talvez como nenhum outro, o espírito adolescente e produziu uma legião de fãs; é um dos romances mais vendidos de todos os tempos (algo mais que 65 milhões de cópias). Pouco tempo depois, o autor se recolheu em Cornish, um pequeno povoado perdido em New Hampshire, a cerca de 170 quilômetros da fronteira com o Canadá, e evitou o contato com a imprensa e com qualquer pessoa que parecesse ser um risco para sua privacidade. Entregou para publicação apenas outros três livros, um de contos e duas novelas, e aos quarenta e seis decidiu que nunca mais publicaria.

O enorme sucesso de seu romance e a fama de eremita forjada não foram os únicos elementos que lhe deram notoriedade: tanto o assassino de John Lennon quanto o homem que tentou contra Ronald Reagan em 1981 disseram que foram inspirados a cometer seus crimes a partir de O apanhador no campo de centeio (romance em que ninguém mata ninguém, por sinal). Um pouco por tudo isso é que existem inúmeras referências a ele e a seu trabalho em inúmeros livros, músicas, filmes e programas de televisão. Cito algumas das mais engraçadas:

1) No capítulo 16 da vigésima segunda temporada de Os Simpsons, Marge descobre que Eleanor Abernathy – a louca dos gatos – sofre de síndrome de Diógenes. Entre todo o “lixo” acumulado em sua casa, ele encontra uma caixa com “todos os livros de J. D. Salinger, exceto O apanhador no campo de centeio”.

2) A extraordinária BoJack Horseman (provavelmente a melhor série de animação desde Os Simpsons) vai ainda mais longe e apresenta J. D. Salinger como personagem. O escritor diz que fingiu ter morrido para que não o incomodassem, mas concorda em produzir um programa de televisão. Também neste caso, eles brincam com a ideia de que ele é o autor de O apanhador no campo de centeio e... e... bem, de outros livros.

Mas, além das piadas, somos muitos fãs de seus outros livros. Meu favorito, bem acima de O apanhador..., é Nove histórias. “Um dia perfeito para peixes-banana”, “Para Esmé – com amor e sordidez” e “O homem que ri” são três dos contos que me arrastariam para uma ilha deserta. E deve haver quem coloque Franny & Zooey acima de qualquer outro texto de Salinger, ou Pra cima com a viga, carpinteiros, ou mesmo, por que não, Hapworth 16, 1924. Então, como não ficar empolgado que Salinger tenha deixado pelo menos algumas outras páginas como as do seu cofre?

3. Esses são os quatro livros “oficiais” de Salinger. Mas, como poderia ser de outra forma, há mais. Graças à biografia de Shields e Salerno, alguns editores independentes souberam que, nos anos quarenta, Salinger havia publicado cerca de vinte contos em várias revistas, contos  que ele nunca quis publicar em livros. E, aproveitando o fato de três deles não terem sido registrados pelo autor, em 2014 os publicaram em um livreto intitulado Three early stories. Os herdeiros iniciaram uma ação legal contra essas editoras, mas o livro ainda está à venda na Amazon.

Essa não é a primeira publicação “não oficial” de contos de Salinger. Em 1974, dois volumes intitulados The complete uncollected short stories of J. D. Salinger circulavam nos Estados Unidos. A história, como tantas outras na vida deste escritor, é novelesca: um grupo de homens, todos chamados John Greenberg, viajou pelo país distribuindo esses exemplares piratas. Em alguns meses foram vendidos algo perto de 25 mil cópias, a um preço entre três e cinco dólares, até que o assunto fosse tornado público e o autor o denunciasse.

O jornalista Richard Stayton diz que, na época, se deu conta da publicação e encontrou os dois volumes num sebo em Berkeley, Califórnia. Mas como ele não tinha muito dinheiro, comprou apenas o primeiro. Quando ele voltou em busca do segundo, ele não apenas não encontrou nenhum dos dois como os livreiros negaram alguma vez tiveram esses livros. “Fui a vários sebos: ninguém tinha ouvido falar sobre o livro. Ao que parece eu havia enlouquecido”, diz Stayton. O que aconteceu? O processo de Salinger também incluía os sebos; portanto, se alguém admitisse ter vendido o livro, estaria autoincriminando. Não encontrei nenhum desses livros à venda na internet. Mas se 25 mil foram vendidos, deve haver alguns oferecidos em algum lugar. E eles devem custar uma fortuna.

4. O que também aconteceu nos últimos tempos, à espera de novos livros, foram notícias sobre livros antigos. Notícias que, de certa forma, também contribuíram para um pouco desse segredo que parecia inabalável. Em novembro de 2018, na véspera do centenário de Salinger, se publicou pela primeira vez uma caixa com os quatro livros de capa dura (a que havia sido “antecipada” pelos Simpsons). Em agosto do ano passado, eles foram editados em formato eletrônico, algo que o autor sempre recusou. Também aconteceu – desde outubro de 2019 e até alguns dias atrás – uma exposição na Biblioteca Pública de Nova York: textos datilografados, fotos, cartas e outros originais de Salinger que até agora não eram vistos se não por um punhado de pessoas.

Quem sabe que outras notícias virão até que finalmente, por volta de 2024 ou 25, talvez, de acordo com as estimativas de seu filho, os novos livros de Salinger cheguem ao mundo. Direi, para dizer tudo, que no fundo não tenho grandes expectativas sobre eles. Existem vários fatores que me fazem suspeitar que os textos que Salinger deixou para sua publicação póstuma provavelmente não são muito bons: seu isolamento e seu fraco contato com outras pessoas, seu relacionamento com o Vedanta e mesmo a passagem do tempo.

Embora eu também saiba que minhas poucas expectativas podem ser um mecanismo de defesa, uma ferramenta inconsciente para controlar a ansiedade. Quatro ou cinco anos é muito tempo, se alguém pensar neles. Melhor não ficar empolgado, melhor cuidar de outras coisas. Por exemplo, em voltar a reler seus quatro livros de toda vida. Uma obra breve, mas que, como todo bom clássico, em cada releitura traz revelações. 

Ligações a esta post:

* Este texto é a tradução de “Los nuevos libros e Salinger”, publicado aqui em Letras Libres.

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