Poesia completa, de Samuel Beckett

Por Eduardo Galeno*

Samuel Beckett, Paris, 1963. Foto: Lütfi Özkök



Poesia completa, de Samuel Beckett (1906-1989), lançado pela editora mineira Relicário, talvez seja a publicação mais necessária para ser vista e debatida, em termos de estudos das poéticas moderna e contemporânea, neste ano no Brasil. Na dianteira da poesia beckettiana em território brasileiro, com traduções do poeta Marcos Siscar e da pesquisadora Gabriela Vescovi, o livro se concentra na dispersão dos elementos poéticos contidos em referência às experiências de Beckett, dramaturgo e escritor irlandês, autor de alguns titãs da literatura e teatro ocidentais como Esperando Godot, Fim de partida, O inominável. A finalidade que o livro engendra é reverberar, além do limite dos escritos ficcionais, o poeta Beckett. Demonstração da máquina literária que ainda não tinha lugar completo entre os leitores brasileiros, cuja intenção dos tradutores, ao fim, se verificou perto do totalizante, agarrando para si as passagens, produções e traços dos poemas de Beckett.
 
Em 293 páginas, a tradução trilíngue (francês, inglês e português) se dispõe, em primeiro lugar, no ótimo texto introdutório de Siscar à discussão do contexto sobre a tradução da poesia de Beckett, partida em duas, cronologicamente: as produções que antecedem a Segunda Grande Guerra e, por lógica, as criações conseguintes à devastação maquínica de grande parte do mundo (pós-1945). No bojo, estão aí desde os elementos iniciais do poeta (publicados) — a começar por seu primeiro livro Echo's Bones and Other Precipitates (Ossos de Eco e outros precipitados), de 1935, cuja dicção ainda acompanhava a poética tradicional, apesar dos óbvios desvios modernistas eliotianos —, caminhando pelo imediato aparato de desmantelamento, no pós-guerra, do sentido, exemplarmente constituído no Six poèmes (Seis poemas), até, ipsis litteris, o próprio fim da pessoa Beckett, em textos no ano de sua morte, em 1989.
 
Ademais, se faz necessária a exposição das notas sobre os períodos entre o começo da década de 1930 e o fim da de 1980. Nelas, Siscar e Vescovi tentam resgatar, de maneira geral, informações condizentes às propostas dos textos de Beckett, contextualizando momentos e antecipando as futuras dificuldades que os leitores terão, referenciadas conforme às circunstâncias de publicação, interiores ou exteriores à forma dos poemas, incluindo aí, por exemplo, a particularidade de fora crânio dentro só, escrito em 1974 e publicado em 1976, que explode seu intertexto com a Divina comédia. Não é nada novo dizer que um poema não se explica, se interpreta, porém o trabalho de tradução, aqui descrito de maneira parcial, das formações poéticas beckettianas, pode, com certeza, tomar a palavra de autoridade porque, afinal, os textos traduzidos são dos tradutores. Que digam, enfim, o que estão traduzindo.



 
fora crânio dentro só
algum lugar alguma vez
como alguma coisa
 
crânio abrigo último
preso de fora como
Bocca preso no gelo
 
alarme ínfimo o olho
se escancara se fecha
nada mais tem a ver
 
assim por vezes como
alguma coisa não
necessariamente vida
 
O projeto da Poesia completa reorienta o complexo existente não apenas em Beckett, na sua relação com os gêneros e referências em literatura, mas igualmente na explanação das poéticas modernistas e contemporâneas (pois, como se sabe, em estilo de tensão, Beckett poderá ter sido o último a seguir uma linha do modernismo hegemônico e, depois, o primeiro a traçar as nuances da pós-modernidade nas artes). O tempo passa, em repetição, nas linhas de sua poesia (como de seu teatro, ensaio e romance): um tempo em que as catástrofes contínuas determinam diretamente o seu caminho criativo. É aprender, mesmo, que a linguagem da poesia moderna repete, inconsciente ou não para os autores, o mundo. Quando Beckett gagueja para exprimir o descontentamento coletivo, ele não faz nada mais além que politizar, simplesmente politizar, criando uma língua nova e viva contra outra língua alienada. “O campo político contaminou todo enunciado” (Deleuze & Guattari).
 
imagine se isso
um dia isso
um belo dia
imagine
se um dia
um belo dia isso
se isso
cessasse
imagine
 
O objetivo do livro se verifica quando se parte do pressuposto de que, até 2022, houve somente traduções esparsas, não totalizando a sua marca, o que foi desmontado a partir deste segundo semestre do ano. Afirmar, nesse ponto, que há a diferença (derridiana) suscitada que nasce do trabalho aqui exposto, de tudo o que se sabe até então sobre os produtos poéticos de Samuel Beckett, suas imagens, técnicas, expressões, conteúdos e formas, cujos resultados serão adquiridos a posteriori, num plano não definitivo, emergindo explosões sígnicas sempre por vir. Poesia completa é — já sugerido, ainda não afirmado — a publicação mais fundamental de 2022 em razão de discussão sobre a modernidade artística, abarcando tanto a compreensão geral quanto, é preciso dizer, seus limites.

______
Poesia completa
Samuel Beckett
Marcos Siscar; Gabriela Vescovi (Trads.)
296p.
 
 
* Eduardo Galeno é graduando do curso de Letras-Português da Universidade Estadual do Piauí. Atualmente, estuda práticas modernas e contemporâneas nas artes.
 

Comentários

Beatriz Oliveira disse…
Parabéns, meu bem! Obra muito importante para a expansão dos estudos beckettianos aqui no Brasil.

Postagens mais visitadas deste blog

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Boletim Letras 360º #580

Boletim Letras 360º #574

Clarice Lispector, entrevistas

Palmeiras selvagens, de William Faulkner

Boletim Letras 360º #579