Manhã e noite, de Jon Fosse

Por Sérgio Linard 

Jon Fosse. Foto: Christoph Hardt


Quando resenhei para este blog o excelente A casa de barcos, do norueguês galardoado de modo muito justo com o Nobel de literatura de 2023, indiquei que aquela seria uma boa obra para se ter um primeiro contato com a escrita de Fosse. Àquela época, dispúnhamos de poucas obras traduzidas do autor, sendo É a Ales e Melancolia (essa em edição esgotada) algumas dessas poucas. 

Hoje, como era de se esperar, o autor ganhou algumas casas editoriais novas e sua obra passou a ser mais frequente e comum entre os livreiros. De 2023 para cá, temos notícias de sua Trilogia, de Brancura, de uma antologia de poemas e o anúncio da tradução de seu monumental romance Heptalogia; também algumas de suas peças já estão disponíveis para o leitor brasileiro. Em pouco tempo, Jon Fosse saiu de uma certa obscuridade do lado de cá do Atlântico e passou a uma popularidade que somente um prêmio desta monta poderia fazer. Sorte a nossa. 

Dentre essas novas levas de textos, em 2025 a editora Zain apresenta no Brasil a primeira edição do mundo em que se pode ler o romance e o libreto de Manhã e noite.¹ Esse excelente texto — sem dúvidas um dos melhores livros de Jon Fosse lidos até aqui — também poderia figurar como uma boa obra de entrada para a literatura desse norueguês. Não faço, contudo, essa recomendação, porque existe uma possibilidade de que a maestria com que o autor utiliza a simplicidade acabe afastando alguns leitores. Embora seja essa uma característica já latente em outras obras do escritor. Mas a simplicidade, neste caso, não é, de forma alguma, prejuízo. Muito pelo contrário.

Em um mundo em que tudo precisa ser complexo, elaborado e com estruturas que reclamem automaticamente algum nível de autoridade, Fosse recorre à eterna antítese de vida e morte, a mais comum nas literaturas, para nos conduzir (ou seria nos arremessar diante de?) a um passeio sobre vida do aqui e do agora e de sua brevidade. Mas sem pieguismos. 

O muito simples jogo de contrastes anunciado no título é esgarçado pela divisão bicapitular da obra em que a primeira partição seria a noite e a segunda o dia, mas com temas que poderiam, mais facilmente, estabelecerem relações com os horários diversos em que se passam. A simplicidade da vida e da morte, do começo e do fim, está aqui como mote principal de uma jornada que nada tem de aventuresca, de empolgante ou de impressionante. Para a escrita de Jon Fosse o que interessa, considerando os textos aos quais já tivemos acesso em terras brasileiras, é o comum, o banal. Poderíamos dizer, inclusive, que é no efêmero que o autor busca a fonte de suas histórias e desse elemento pueril constrói o eterno, o pungente e marcante saber-se humano

“Seu filho nasceu perfeito e tudo correu bem, diz a velha parteira Anna

E ele vai ser pescador, diz Olai

Isso mesmo, diz a velha parteira Anna

Olhe só como ele está bem agora, esse menininho, diz Olai

Ele encontrou seu lugar na vida, diz a parteira Anna” (p. 21)

A leitura do excerto acima permite a materialização de algumas tendências comuns na obra do autor. Primeiro, e talvez a mais peculiar dele: presença forte de traços de oralidade. Há, em todo o romance, um uso excessivo de conjunções aditivas “e” que são bastante comuns em situações de diálogos nos quais o fluxo da história interessa mais do que a qualidade ou variabilidade dos elementos coesivos.

Segundo, este exemplar trecho ajuda-nos a perceber como o conteúdo literário foi explorado de modo que o material trabalhado se conjugasse perfeitamente em prol não apenas de simplicidade enunciativa, mas também de uma reafirmação de uma humanidade simples. A parteira, após ajudar no nascimento do protagonista Johannes, afirma que aquele infante encontrou seu lugar na vida. Uma perspectiva que pode parecer-nos estranha, principalmente quando consideramos os ideais de que um lugar na vida só é encontrado depois de se amealhar recursos financeiros. Mas em Manhã e noite o lugar na vida encontra-se na singeleza de se estar vivo. Bastou que Johannes nascesse para que seu lugar na vida fosse reservado. Nada mais correto. Contudo, é uma simples e incontornável verdade cuja constatação traz mais impacto do que acolhimento. Estamos, assim, diante de um romance que trata o humano como humano, feito das pequenas e igualmente importantes coisas e não somente dos acontecimentos grandiloquentes. Arrisco afirmar que nessa obra de Jon Fosse encontramos um primoroso exemplo para a humanização promovida pela literatura e sempre defendida por Antonio Candido, nosso crítico literário maior. 




Com o prosseguimento da história, a simplicidade ganha alguns ares místicos, porque a própria narrativa introduz o questionamento sobre o estado daqueles personagens sobre o qual lemos. Mas isso não faz com que o comum deixe de ser material. Aqui, diante da maior realização literária desse romance sobre o qual falamos, a história passa a garantir que a sombra da complexidade não deixe de ser apenas isso: uma sombra. Jamais ultrapassando os limites da superfície do texto, aquilo que poderia conduzir a narrativa para campos de maior complexidade, na verdade proporciona uma aceitação daquilo como se comum fosse sob pena de incompreensão do texto lido. 

A arquitetônica da obra, pegando de empréstimo termos bakhtinianos, instaura-se de modo que quaisquer tentativas de imposição de complexidades obriguem o leitor a deixar de ver aquelas simples figuras humanas como humanas. A sede incessante pela compreensão precisa dar lugar para a tomada de consciência enquanto ser limitado que, como tal, não alcançará respostas a tudo que lhe aparece como pergunta nas turbulências de uma mente agitada. Em Manhã e noite exatamente tudo precisa ser encarado com parcimônia.

“Para lugar nenhum?, diz Peter

Não, para onde vamos não é lugar nenhum, e por isso mesmo esse destino não tem nome, diz Peter

É perigoso?, diz Johannes

Perigoso não, diz Peter

Perigoso é uma palavra, e para onde vamos não existem palavras, diz Peter” (p. 93-94)

O desfecho do romance pode ser lido como resultado de uma aura religiosa, mas que não se associa, necessariamente, com alguma religião. Por vezes, traços de fé aparecem na obra do autor, mas sem se consolidarem como algum tipo de apologia ou de proselitismo. No caso desse romance, somos alçados mais a uma posição de contemplação de um desfecho comum para uma situação comum do que para alguma pregação. O encerramento, assim como a obra, não produz silêncios eloquentes. Deparamo-nos, sem dúvidas com o silêncio ele próprio em sua face mais silenciosa

A essa altura, talvez seja pertinente destacar o seguinte: Manhã e noite, embrenhado de simplicidade, não merece nossa atenção apenas por ser um título que já vem chancelado pelo Nobel. Esse romance é exemplar e se aproxima muito de construções orais que fazem da simplicidade das histórias repassadas de geração para geração a grande fonte da literatura. Não vieram dessa tradição nossas maiores histórias e nossos maiores poemas?

A simplicidade de uma vida com início, meio e fim, passada em uma manhã e em uma noite, é material para, sem dúvidas, um dos grandes romances de nosso tempo. A leitura de Manhã e noite é altamente recomendada. Por aqui, já figura como uma das melhores descobertas do ano.


Ligações a esta post:

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Manhã e noite
Jon Fosse
Leonardo Pinto Silva (Trad.)
Zain, 2025
152p.


Notas:
1 A obra ora resenhada foi traduzida para o português do Brasil por Leonardo Pinto Silva. Neste texto, debruço-me apenas sobre o romance. Não foi alvo da minha crítica o libreto.

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