Os substitutos, de Bernardo Carvalho

Por Pedro Fernandes


Bernardo Carvalho. Foto: Phil Dera


De alguma maneira, eis um retorno de Bernardo Carvalho com Os substitutos àquele livro que significou um marco na sua trajetória como ficcionista. O périplo ora aventuresco, ora iniciático que conduz as duas figuras principais desse romance ao coração da Amazônia e a conturbada relação entre pai e filho funcionam como âncoras para a narrativa de Nove noites. Mas aqui, o interesse central da narrativa recai especificamente no dilema de corte familiar; o que o narrador acompanha num arco temporal circunscrito entre a infância e a maturidade é certa investigação de um filho em torno de descobrir o pai. Esse investimento resulta, se contornado tal interesse, no desvelamento da própria figura, antes provocada por um impasse instalado no interior de um imbróglio amoroso vivido entre esse investigador e o namorado, trinta anos mais novo.

Neste romance, Bernardo Carvalho tira proveito de certo princípio parabolar. Nunca o que se conta, apesar do uso de seu reconhecido estilo objetivo, é dado diretamente, mas sempre sugerido, entrevisto, de maneira a provocar o leitor ao trabalho de construir ele próprio o funcionamento das circunstâncias pelo reconhecimento estabelecido entre as narrativas paralelas. Essa estratégia recupera, como é possível perceber pela significação, o que se denota desde o título: o substituto é o outro assemelhado que se exerce na ausência de um anterior. Nesse sentido, Os substitutos, também pode ser lido como uma investigação acerca da falta e entendido o impasse pai e filho, o que este perscruta é o vazio de uma paternidade exercida complexamente. Se assim, a via indireta é, se não a única, talvez a mais honesta para conter o ausente.

Dividido em três partes, o romance recupera três instantes distintos para o seu protagonista: uma viagem realizada junto ao pai quando criança a um lugar inóspito da região amazônica constitui a matéria mais alargada da narrativa; o estabelecimento na vida adulta, quando os eventuais laços entre pai e filho são esgarçados sem que os dois dispensem esforços numa eventual emenda; e, na maturidade, quando o espoletar de um abuso sexual sofrido pelo namorado no começo da carreira e o seu interesse em denunciá-lo, obriga a personagem central da narrativa a tomar partido contrário no caso. 

Os acontecimentos da primeira divisão do romance aparecem mediados por uma narrativa de ficção científica ora recontada pelo filho ao pai, ora espreitada por este, ora ainda lida por aquele, intercalando-se ao andamento da narração. Este livro dentro do livro escrito por obscuro escritor estadunidense e também intitulado Os substitutos acompanha um grupo de crianças levado no interior de uma nave para habitar um novo planeta. Essa narrativa que se integra por entre os acontecimentos registrados pelo narrador de Bernardo Carvalho funciona igualmente de maneira paralela, afinal trata-se de uma odisseia no espaço e o conflito aí estabelecido lida com os volteios do amadurecimento precoce dos infantes e com o vazio familiar. No interior do livro que lemos, o conteúdo desse livro fictício torna-se especulativo, seja porque seus sucessos são replicados de alguma maneira na viagem e no convívio entre os nossos protagonistas, seja porque o assunto encontra equivalências com o contexto de nossas personagens, seja ainda pelo traço fabular recorrente na narrativa infanto-juvenil que aqui responde como matéria explicativa para o lacunar na figura principal e forma para o próprio romance se agora recordamos do seu princípio parabolar.

As crianças do livro de ficção científica são despertadas nas proximidades do novo planeta e iniciadas na preparação profissional para a construção da vida nesse lugar. Entretanto, uma delas perdeu a memória, incluindo as das primeiras aprendizagens, durante o processo de hibernação; essa diferença será crucial para o andamento no protótipo terrestre, uma vez que descobrirá o sentido da missão espacial: todos eram cobaias dos que verdadeiramente habitariam o recente. Esse conteúdo fabular, esclarece em parte duas pautas do romance de Bernardo Carvalho. Uma delas é a descoberta alcançada na maturidade de nossa fracassada tentativa de corrigir o passado por um presente melhor, mesmo assim, porque somos a memória que carregamos, essa sisífica condição nos mantém agarrados à vida pela ilusória autenticidade da existência.

Os substitutos serão sempre uma cópia melhor dos antecessores ou enfermiços porque uns e outros estão marcados de maneira indene pela imperfeição? A pergunta indissociável dos vínculos geracionais se estende para os contínuos processos de dizima colonial praticados entre a espécie humana desde os tempos imemoriais. A viagem do pai do protagonista de Os substitutos é pelo reconhecimento de um latifúndio em terras indígenas adquirido no âmbito da política desenvolvimentista do período militar, o mesmo povo sobre o qual o filho mais tarde escreverá um ensaio acerca da cultura do animismo, primeiramente ouvida na conversa com o filho do caseiro responsável pela vigilância do então patrimônio agrário do pai. Embora esse tema não seja o principal, sua presença no romance, a partir de uma abertura de escala transmuda o de perto para o distanciado¹, os substitutos são, em nosso caso, a figura através da qual podemos encontrar o tipo colonial que nos formou.

O índio nesse romance é uma presença fantasmagórica. É o ausente contra o qual se investe pela invenção, como faz o cinema de faroeste, para citar uma parte do repertório cultural nessa viagem de pai e filho à região amazônica; ou pela violência exercida nesse caso ainda sob os auspícios de um projeto civilizatório de nação pautado na modernidade, no desenvolvimento e no progresso e que resulta como agora conhecemos na especulação incontrolada do capital. Se nos valermos do animismo conceituado pelo cientista social interessado na antropologia, esse ausente assoma toda vez como um sintoma e pelo menos uma imagem é singular no desenvolvimento da investigação do protagonista de Bernardo Carvalho. 



Em São Félix, numa parada na viagem de regresso da sua propriedade, o pai é confrontado com uma índia e da qual escapa visivelmente perturbado; essa mulher transmuda em três versões: a primeira na história ouvida pelo filho do caseiro de que a mulher tivera o filho tomado da vida por um tamanduá; a segunda pela história contada pelo pai de que a índia propriamente se desfizera da família; e a terceira — outra vez reparemos o procedimento das narrativas paralelas — pela história contada pelo taxista de uma índia assassinada por um recruta da expedição Rondon que assim agira para encobrir sua disfunção sexual. Para o taxista, a índia que perseguira o pai do protagonista é uma testemunha do tipo, que escapou ilesa de um segredo terrível. Fica para o leitor a tarefa de estabelecer uma imagem desse pai — associando a posição, as reações nesses acontecimentos e o seu tratamento para com as mulheres. Com essas peças é possível dizer uma persona, mas a certeza é sempre produzida e resultada de uma construção em torno de um vazio, que visto de perto, é outra certeza, tal como denota as versões dessa personagem.

A fábula do livro preferido do protagonista corta o restante do romance. Naquela, o conhecimento da ausência dos progenitores, só alcançado pelo desmemoriado, único capaz de escapar ao tratamento de alienação ao que os demais são submetidos para aceitarem taciturnamente os substitutos como habitantes do novo planeta, se refaz no nosso protagonista. Ou seja, o romance de Bernardo Carvalho nos provoca se a ideia de que a memória é nossa salvação é mesmo suficiente para termos por ela nossa âncora — a memória também nos condena? O pai é continuamente um vazio ou um incômodo para o qual sempre é lançado, é um fantasma manifesto (para, pela e com a memória) de várias maneiras: tardiamente, no episódio adverso com o namorado; no já evidenciado distanciamento entre pai e filho; e, simbolicamente, no desaparecimento dos restos mortais só descoberto anos depois de visitas à tumba do pai morto. 

Mas, esse vazio não é somente o ausente, o que a memória não conseguiu ou falhou em fixar, o distante, o desaparecido, o incômodo, o latente. Ao evidenciar o sentimento de medo da criança agarrada ao banco do bimotor enquanto o pai usa o aparelho para acuar os índios com voos rasantes, o narrador descobre que: “A coragem é o medo imposto aos outros.” Ainda não estamos no fim da narrativa, mas a sentença pode ser talhada como sua síntese. Neste romance o vazio é o medo, portanto, presença constante, o improvável de ser dirimido. É o medo que se interpõe entre pai e filho e os impede de experimentar a autenticidade do enlace paterno; é para encobrir o medo que este mesmo pai atua violentamente contra todos. Toda alternativa para suprimir o medo, que apenas pode ser substituído. A coragem é um desses substitutos. O problema é que se não aprendemos a conviver com o medo, tampouco administramos os seus substitutos. Mas continuamos a acreditar quando alcançaremos o desejado tempo reparado e total.


______
Os substitutos
Bernardo Carvalho
Companhia das Letras, 2023
232 p.


Notas
1 A noção de escala em Os substitutos é adquirida da cartografia. Expressa a razão entre as dimensões de um acontecimento na realidade e as suas dimensões nesse plano. Os procedimentos narrativos adotados no romance são singulares nesse sentido quando: o narrador coloca-se na forma impessoal apesar de lidar com circunstâncias profundamente subjetivas; um mesmo episódio é especulado sob diferentes ângulos; ou os contrastes entre as perspectivas, o idealizado ou o visto à distância difere do vivido ou do visto de perto, qual os letreiros luminosos japoneses que o pai alguma vez foi representante no Brasil. Isso se deixa marcar ainda quando quatro dos trinta capítulos do romance se intitulam “As coisas são piores de perto”. 

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