O agente secreto, de Kleber Mendonça Filho

Por Pedro Fernandes 



Uma interminável colcha de retalhos. Com essa imagem poderíamos definir O agente secreto, mesmo sabedores de que, talvez, seja improvável encontrar a síntese para um filme que se desvia das leituras fáceis e se quer nebulosa em expansão. Noutra parte, contraditoriamente, se é um trabalho marcado por um imaginário recorrente na filmografia de Kleber Mendonça Filho, como o seu interesse por um Recife tragado pelos processos (mesmo culturais) de gentrificação que, cedo ou tarde, grassam todas as cidades no mundo, é uma obra feita conforme os protocolos reiterados pelo cinema recente em que a técnica, por vezes, se sobrepõe, com o explícito interesse de se deixar notar pelos júris das premiações, como é o caso do uso do batido recurso do filme de citação — aqui, o mass cinema hollywoodiano que, para nos mantermos no mesmo campo semântico, dragou os espaços e as idiossincrasias da cultura cinematográfica por onde passou, sobretudo no Brasil, como aliás, O agente secreto prova-o, ao se fazer o cinema esperado pela gringa. Esperamos pela subversão, mas ela não vem; o que comparece é a reiteração de que, sim, nós sempre tivemos histórias a altura das contadas pelos bastiões hollywoodescos.

O emaranhado de fios que sustentam a narrativa de O agente secreto pode ser resumido em quatro instâncias: um professor universitário saneado pela ditadura militar e perseguido por um inimigo infiltrado no poder regressa ao seu lugar natal em tentativa de escapar da morte, essa que se atravessa no caminho do foragido muito próximo do fim de sua viagem, como o prenúncio do seu destino e, de alguma maneira, a circunstância ideal para uma das muitas identidades que podem assumir essa personagem; nesse caso, a que nomeia o filme. Armando pode ser o agente secreto para o primeiro que o conhece desde quando, sem revelar sua identidade, a verdadeira ou a falsa, aparece na cena de um crime e se demonstra preocupado com o destino do defunto largado à própria sorte no terreno baldio de um posto de gasolina e troféu de disputa entre cães famintos e aves de rapina, enquanto o Estado encontra-se envolvido nas tramas dos seus próprios interesses e em nada com a dignidade do seu povo; também pode ser para os de fora do grupo de protegidos administrado por dona Sebastiana, onde passa a ocupar o lugar de refugiado; ou para os da repartição pública composta apenas de capachos, na qual passar a trabalhar como alguém interessado em descobrir o destino oculto da própria mãe, certamente outra vítima do mesmo Estado antes referido.

A segunda instância é a de um grupo de estudantes universitários que se debruça sob um dossiê composto por intermináveis horas de gravações que constituíram o instante imediato ao destino de Marcelo; esta começa a interceptar a instância original a partir do momento em que descobrimos a existência de uma organização secreta interessada em preservar a vida de pessoas perseguidas pela ditadura sob a acusação de atuarem contra a ordem moral do Estado; essa entidade secreta, é claro, guarda especial interesse por casos que envolvem gente de alguma relevância, como o caso de Marcelo e dos seus companheiros de refúgio, capazes de melhor revelar, para fora da cortina de ferro dos regimes os seus horrores. A passagem que remete para os nossos dias serve para esclarecer desde o motivo do regresso do ex-professor ao Recife, como a sua saída da cidade e outros destinos trágicos que o envolve numa condição de malquisto pela família da sua mulher; serve ainda para denunciar que o Brasil assolado pelo imperativo do poder a qualquer custo dos militares prevalece vigente, quando algumas das dignidades humanas continuam a ser atacadas em prol dos interesses capitais daqueles que nos governam — a manutenção da carestia pública dos nossos militares hoje, por exemplo, interfere nas frentes em que o país poderia avançar. No filme, a pesquisa das estudantes sobre o destino do professor Marcelo é interrompida pelo corte de recursos de financiamento oferecidos pelo Estado. De outra parte, e O agente secreto não é por essa e várias razões uma película maniqueísta, muitos dos que alcançaram o mínimo direito, como o de cursar uma faculdade, desprezam, por uma total crise de consciência da história ou mesmo uma valorização do lugar alcançado, o seu papel na ordem social: uma das estudantes da pesquisa apenas cumpre protocolarmente com suas atividades quando não as descarta, preenchendo o tempo com trivialidades na internet.

A terceira instância se coloca na exata posição extrema da atitude negativa dessa estudante. Ciente de um compromisso ético que a envolve durante o fazer acadêmico que lhe é tirado, em um futuro, ela consegue repassar ao filho de Marcelo os materiais de pesquisa que, se não resolverão o obnubilado passado familiar, o ajudarão a compreender as complexas reentrâncias do poder no Brasil de seus pais e, a quem sabe, formar para a condução ou reivindicação de outro país, afinal qualquer sentido de povo e de Estado passa por uma luta que é parte da própria vida, se, além de criaturas biológicas, somos criaturas políticas, simplesmente porque não existimos, por mais que queiramos, à própria sorte do acaso, mas das complexas redes com as quais engendramos a vida a fim de afiançar o valor biológico mínimo, isto é, a própria vida. A partir daqui, o cineasta deposita esse fazer no campo das possibilidades, porque sabe que o papel ético de uns nem sempre é a garantia de sua continuidade por outros, mesmo que a figura seguinte se demonstre, nesse caso, interessada e aberta a tanto: depois de alguma resistência, o filho de Marcelo, agora médico, até então pouco afeito à nebulosa da própria biografia sob o manto da titubeante memória da infância ou o trauma do esquecimento com o qual poderá ter modelado toda a vida, aceita os materiais entregues. Os eventuais desassossegos desse homem garantiriam, bem sabemos, a intriga de outro filme ou é o próprio filme. 

Se as duas últimas instâncias constituem histórias feitas por deriva, isto é, a pesquisa recupera o passado de Marcelo e esse puzzle inacabado poderíamos supor como aquilo que foi reconstituído mais adiante pelo filho — se estivermos certos da boa-fé do médico —, a quarta instância é, na verdade, uma história dentro da história. Essa história, por sua vez, intermedia ou conjuga várias pontas dos múltiplos fios de O agente secreto: é o teor fabular de matéria infantil alimentada pelo pequeno Fernando e sua obsessão por tubarões — um auge de ataques desses animais no Recife e a coincidente estreia nos cinemas do suspense de Steven Spielberg. Esse conteúdo confunde-se com a aparição da Perna Cabeluda, uma lenda urbana recifense que o filme propositalmente a reconstitui com tintas de adulto porque quer revelar a história como produto das muitas cortinas de fumaça fabricadas pelos militares para ocultarem os seus desmandos e se manterem no poder. Quer dizer, enquanto o recorte se filia ao conteúdo hollywoodinesco com todas as tintas kitsch — não esqueçamos que a indústria do entretenimento estadunidense expressou-se no seu boom como estratégia de domínio cultural e ao mesmo tempo ocultamento dos desmandos do seu país — reaviva um imaginário da cultura recifense, esclarece o modus operandi da ditadura e ainda funciona como metáfora para os monstros nos quais resolvemos acreditar enquanto negamos a nós mesmos nossa realidade e isso diz do Brasil dos anos setenta do século passado, diz desse mesmo país hoje, e diz da própria vida de Fernando; note que, depois de receber o dossiê com peças do passado do pai, uma das histórias que ele recorda para Flávia, é a da sua obsessão por tubarões e pelo filme de Spielberg, preenchendo uma das lacunas que a primeira instância deixara em branco: se Fernando conseguiu ou não realizar o desejo àquela altura de assistir ao Tubarão

Ora, essa história dentro da história não é bem uma nova instância de O agente secreto, mas o conteúdo fabular parece revestir o conteúdo do filme: a história do Brasil é feita dos fantasmas nos quais decidimos acreditar ao invés de combater porque a ação preterimos o que nos é inventado. Somos, curiosamente, o país sequestrado pela ficção, em que mesmo a nossa história só nos faz sentido quando tomada pelas tintas da ficção. O sentido do termo aqui, não é, evidentemente positivo, mas negativo, porque é a dimensão mais rasteira que empregamos para a noção de ficção: a mentira que nos entretém. São marcantes, nesse sentido duas passagens do filme: a primeira é marcada pelo sucesso de vendas obtido pelos jornais com o Caso da Perna Cabeluda e como isso é mostrado, um grupo de trabalhadores às gargalhadas com jornal enquanto os pacotes de impressos cobrem a cidade; a segunda, é quando Marcelo decide contar, tomado pela certeza do destino trágico ou de alguma esperança na salvação, sua identidade para os do grupo em que foi acolhido. É o gesto de recolher o manto ilusório da invenção de gosto duvidoso, um modo de olhar por fora do que mantém o poder, que é, como dissemos, a ficção de péssimo gosto, o kitsch. Como toda fábula, eis o conteúdo moral do filme de Kleber Mendonça Filho: um convite à desficcionalização, a olhar para fora da massa de manobra, um chamado às complexas reentrâncias da nossa própria história sob a pena de continuarmos sequestrados pelas instâncias duvidosas que assumem os destinos do nosso país com as histórias que elas querem que acreditemos. 


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