Gabriel García Márquez e o cinema: um amor não correspondido



Por Alejandra Rodríguez

Gabriel García Márquez em entrevista nos estúdios da RTI TV, em Bogotá, 1997. Arquivo: Fundación Palavreria.


Geralmente se aceita a ideia de que não há filme que iguale, e muito menos supere, o livro que lhe antecede. A História da Literatura está cheia de autores descontentes sobre como suas histórias foram tratadas na grande tela.

Gabriel García Márquez não podia ser uma exceção; com dois agravantes. Por um lado, Gabo é um dos escritores que mais interesse tem despertado entre os cineastas. E, conta com um grande número de filmes entre adaptados a partir de seus romances e contos.

Por outro lado, o colombiano manifestou um claro interesse pela sétima arte. “No início quis ser diretor e a única coisa que realmente estudei foi o cinema [em 1955 se matriculou no Centro Experimental de Cinematografia de Roma]. Agora nem sequer vou mais ao cinema porque chego à sala e termino dando autógrafos. Só vejo sessões privadas. Na televisão não gosto”, dizia numa das muitas entrevistas que concedeu.

Gabriel García Márquez também escreveu sobre cinema (foi um dos colunistas mais respeitados da Colômbia e da América Latina) e escreveu roteiros para o cinema. Colaborou em vários projetos e interviu nos roteiros e nas filmagens de várias de suas obras que foram adaptadas para o cinema [ver quadro no fim do texto].

E mais, o escritor fez suas incursões como ator, se assim se pode denominar a aparição na adaptação cinematográfica de seu próprio conto “Nesta terra não há ladrões”, na qual também atuavam Luis Buñuel, Juan Rulfo e Carlos Monsiváis. Não foi seu único papel; também esteve presente em Jogo perigoso, de Arturo Ripstein e Luis Alcoriza; Patsy meu amor, de Manuel Michel; ou O ano da peste, de Felipe Cazals e que também era a adaptação de um livro de Daniel Defoe (Um diário da peste).

Por fim, junto com seus condiscípulos do Centro Experimentale di Cinematografía e apoiados pelo Comitê de Cineastas da América Latina, fundou em 1986 a Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de Los Baños, em Cuba. A esta instituição dedicou tempo e dinheiro de seu próprio bolso para apoiar e financiar a carreira em cinema de jovens provenientes da América Latina, Caribe, Ásia e África.

Mas, apesar de todos esses fatores favoráveis, a maioria dos projetos cinematográficos de obras de Gabriel García Márquez estiveram marcados pela decepção. Segundo o veredito da maioria dos críticos, nenhum dos filmes, independentemente do prestigioso elenco ou do ambicioso projeto, conseguiu um bom sabor na boca do autor; tampouco na do público.

Os motivos para isso são muitos, mas todos têm a ver com o realismo fantástico, estilo a qual Gabriel García Márquez esteve enquadrado. Os entornos fantásticos a meio do caminho entre a realidade mais terrena e a fantasia mais imaginosa entre os quais Gabo situa suas histórias; essa mistura de passagens oníricas com cenas reais é verdadeiramente difícil traduzir em imagens para a grande tela, sobretudo tendo em conta que o primeiro roteiro devia responder a como isso foi imaginado pelo autor para depois se chegar à compreensão de como isso é construído pela mente do espectador.

Também não é fácil plasmar num filme a diversidade de tramas que conformam a maioria das obras do escritor colombiano. Histórias complexas que se entrecruzam, personagens que se encontram e se separam... e tudo isso muitas vezes ao longo de várias gerações. Nenhuma das personagens apresentadas por García Márquez é simples; todas têm múltiplas arestas e facetas da personalidade que não são fáceis de transmitir em apenas duas horas de um longa-metragem.

Soma-se a isso o fato de que os seguidores de Gabo são autênticos devotos de sua maneira de escrever e de descrever, a dificuldade maior que qualquer diretor ou roteirista enfrenta quando se decide pela adaptação de uma de suas obras.

Desta maneira, apenas se livraram da língua ferina da crítica, e com muitas ressalvas, alguns filmes baseados em obras modestas ou Ninguém escreve ao coronel, versão estreada em 1999, protagonizada por Salma Hayek, Marisa Paredes, Fernando Luján e Rafael Inclán. Talvez o fato de seu amigo Arturo Ripstein tenha sido o diretor fez com que a película tenha sido melhor acolhida.

Outras, como Crônica de uma morte anunciada (1987), dirigida por Francesco Rosi e em cujo elenco figuravam Anthony Delon, Ornella Mutti, Irene Papas, Rupert Everett ou Lucía Bosé foram qualificadas como “muito frágeis”. E até isso é melhor que o total desdém com que foram recebidas De amor e outros demônios, dirigido pela costarriquense Hilda Hidalgo em 2010 ou Amor nos tempos do cólera, uma versão que nem mesmo Javier Bardem pode salvar das críticas verdadeiramente ferozes.

Com estes e outros antecedentes, não é de estranhar que García Márquez se mostrasse disposto a colaborar em projetos cinematográficos sobre suas obras mas que sempre resistisse a adaptação de Cem anos de solidão, sua obra-prima e com a qual obteve o maior dos reconhecimentos, para o cinema [ver quadro no fim do texto]. Talvez quisesse afastar-se do fiasco de que o filme não estivesse, mais uma vez, a altura do romance; ou talvez desejasse expressamente que Macondo só figurasse no papel e na imaginação de cada leitor.

Duas observações de Gabriel García Márquez sobre o cinema

Cem anos de solidão jamais será adaptado para o cinema. “A razão pela qual não quero que Cem anos de solidão seja adaptado para o cinema é porque o romance, diferentemente do filme, deixa para os leitores uma margem de criação que permitem imaginarem as personagens, os ambientes e as situações, como eles acreditam que são. E então quando veem uma personagem que lhe lembra um tio, uma senhora que é exatamente igual a uma senhora que eles conheceram quando eram crianças ou que conheceram semana passada. Ou ao contrário, um dia encontram uma pessoa que se parece exatamente com Ursula Iguarán. E nessa forma vão pegando rostos, lugares e reconstroem o romance pela sua imaginação e fazem o romance para eles. Agora, no cinema isso é impossível. Porque o cinema é o rosto que você vê, a imagem é de tal maneira impositiva que você não tem escapatória, não deixa a mínima possibilidade de criação porque está dizendo tudo como é, com uma plasticidade, uma perenidade das quais você não escapa. Então prefiro que meus leitores continuem imaginando minhas personagens como seus tios e meus amigos e não que possam totalmente estarem condicionados ao que viram na tela”. (Entrevista à Caracol Radio, maio de 1991).

Literatura e cinema: um casamento mal resolvido. Sempre acreditei que mesmo que o diretor necessite de um escritor, o cinema está submetido a ser um subalterno da literatura. A aspiração do cinema para ser uma arte completamente autônoma é que o próprio diretor conte sua história completa desde o início, sem a ajuda de nenhum texto literário. Este é um pensamento idealizado que tenho por meu amor pelo cinema e meu amor pela literatura. Sem dúvida que a realidade é outra, a realidade é que até agora cinema e literatura são uma espécie de casamento mal resolvido: não podem viver nem juntos nem separados. (El Espectador, agosto de 1987).      

Gabriel García Márquez no cinema

De amor e outros demônios (2010), de Hilda Hidalgo 
Memórias de minhas putas tristes (2001), de Henning Carlsen
O amor nos tempos do cólera (2007), de Mike Newell.
Os meninos invisíveis (2001), de L. Duque Naranjo (roteiro coescrito por GGM)
Ninguém escreve ao coronel (1999), de Arturo Ripstein
Édipo Rei (1996), de Jorge Alí Triana (roteiro coescrito por GGM)
Cartas del Parque (parte da série Amores impossíveis, 1988), de Tomás Guitérrez Alea (roteiro coescrito por GGM)
A bela palomera (1988), de Ruy Guerra (coescrito por GGM)
Milagre em Roma (1988), de Lisandro Duque Naranjo (coescrito por GGM)
Um senhor muito velho com umas asas enormes (1988), de F. Birri
Crônica de uma morte anunciada (1987), de Francesco Rosi
Tempo de morrer (1985), de Arturo Ripstein (coescrito por GGM)
Erêndira (1983), de Ruy Guerra
O ano da peste (1979), de Felipe Cazals (coescrito por GGM)
Maria do meu coração (1979), de Jaime Humberto Hermosillo
A viúva de Montiel (1979), de Miguel Littín
Presságio (1974), de Luis Alcoriza (coescrito por GGM)
Patsy meu amor (1968), de Manuel Michiel
Jogo perigoso (1966), de L. Alcoriza e Arturo Ripstein (coescrito por GGM)
Tempo de morrer  (1966),de Arturo Ripstein (coescrito por GGM)
Nesta terra não há ladrões (1965), de Alberto Isaac

* O texto de Alejandra Rodríguez é uma tradução de "Gabo y el cine. Un amor no correspondido" foi publicado aqui, no El Mundo. As declarações de Gabriel García Márquez sobre cinema foram colhidas do site do Centro Gabo.



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