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Mostrando postagens de 2025

Uma estéril semeadura

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Por Luis Castellví Laukamp Donato Ndongo. Foto: Atilano Garcia Donato Ndongo é a voz literária mais proeminente da Guiné Equatorial. Nascido em Niefang em 1950, passou quase toda a sua vida adulta exilado na Espanha. Seu primeiro romance, As sombras de tua memória negra (trad. livre [1987]), tornou-se leitura essencial para quem busca compreender o colonialismo espanhol naquele país. Seu segundo romance, Os poderes da tempestade (trad. livre [1997]), examina os efeitos do regime ditatorial de Francisco Macías (1968-1979), o primeiro governo após a independência, na Guiné Equatorial. Seus terceiro e quarto romances, O metrô (trad. livre [2007]) e Quem matou o jovem Abdoulaye Cissé? (trad. livre [2023]), focam na migração africana para a Espanha. Quem matou o jovem Abdoulaye Cissé? foi inicialmente concebido como um conto para ser incluído no livro Estéril semeadura (trad. livre [2025]). Depois, Ndongo publicou-o como um romance independente, e o livro permaneceu com quatro contos:...

Trivialidade e dispersão em Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf

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Por Gabriella Kelmer Virginia Woolf. Foto: Fine Art Images/Heritage Images “Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores”, diz o primeiro e ilustre período do mais conhecido romance de Virginia Woolf. A singeleza da sentença, de aparência externa pouco dada à abstração, é constituída pela absoluta trivialidade que nela se inscreve; são os dados aí registrados, entretanto, um sumário consistente de algumas das questões centrais do romance e da personagem que o intitula. Há o casamento, evidenciado pelo pronome de tratamento das senhoras; a iniciativa em assumir a tarefa que se presume de outrem (sendo por isso necessário afirmar que irá “ela mesma”); a expectativa da beleza a que se recorre na ação de comprar flores; a absoluta cotidianidade do tema e, portanto, da mulher a ele associada.  Tudo isso retorna sistematicamente ao longo da narrativa, expandindo-se a abertura inicial para lados muitas vezes imprevisíveis. Está esse início inteiramente afinado, no entanto, a a...

A revolução de Paul Thomas Anderson

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Por Ernesto Diezmartínez  Nos créditos finais de Uma batalha após a outra (Estados Unidos, 2025), apenas o décimo longa-metragem do cineasta californiano Paul Thomas Anderson (desde seu primeiro e prolixo filme principal Passado sangrento (1996) até o encantador e nostálgico Licorice Pizza (2021), passando por obras-primas como Boogie Nights (1997), Magnolia (1999) e Linha fantasma (2017), começamos a ouvir o clássico dos anos setenta de Gil Scott-Heron nos alertando que a revolução não será televisionada e que, portanto, é melhor nos levantarmos de onde estamos sentados e começarmos a nos mexer. Este emblemático poema musical é um tema recorrente nos diálogos da segunda metade do filme, porque todos os personagens da obra mais recente de Anderson se importam com a revolução, seja retomar, continuar ou deter. De qualquer forma, por mais importante que seja a revolução, isso não é tudo. É apenas uma parte de algo muito mais transcendente. Escrito pelo próprio cineasta com base...

László Krasznahorkai, o escritor da melancolia

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Por Manuel Pacheco  László Krasznahorkai. Foto: Lenke Szilagyi Ler László Krasznahorkai exige perspicácia para não se desconectar de sua escrita concisa ou se irritar com seu pessimismo. Alguns de seus livros permanecem na minha mesa de cabeceira durante meses, porque ele não é um autor com o qual alguém queira ler antes de dormir. No entanto, quero evitar rotulá-lo como um autor hermético. O difícil, assim como o misterioso, é um rótulo negativo aplicado quando o conteúdo não é facilmente perceptível à primeira vista, quando não é possível resumir um enredo em poucas palavras ou vender uma história de forma envolvente. A dificuldade diz respeito aos obstáculos que interferem no acesso à informação, e é por isso que posso falar de uma teoria, um ensaio ou um tratado difícil, mas não faz sentido falar de um romance difícil pela mesma razão que não faz sentido dizer que um romance impõe obstáculos, já que, felizmente, os romances não são informativos. A exigência de concentração é um...

Ana Paula Tavares, veias finas na terra

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Por Pedro Fernandes as palavras são como os olhos das mulheres fios de pérolas ligadas pelos nós da vida — Ana Paula Tavares Ana Paula Tavares. Foto: Matilde Fieschi São poucos dos reconhecidos escritores de Angola que encontraram certa projeção entre os leitores brasileiros sem antes ocuparem lugares de premiações expressivas como um Prêmio Camões. É o caso de José Eduardo Agualusa, que ingressou em nosso território no ponto alto da chegada dos escritores luso-africanos, de Ondjaki, que morou mesmo certo tempo por aqui, e de Djaimilia Pereira de Almeida. Os demais, um José Luandino Vieira, um Pepetela, já ingressaram nas listas do mais importante galardão para as literaturas de língua portuguesa. Enquanto isso, as lacunas são ainda enormes: Manuel Rui, Boaventura Cardoso, Uanhenga Xitu ou mesmo Ana Paula Tavares têm pouca ou nenhuma presença em um mercado editorial de fronteiras sempre alargadas, por exemplo, para o pop trash  despejado pelos Estados Unidos. Será que o Prêmio Camõ...

Boletim Letras 360º #660

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DO EDITOR Saibam que na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste boletim, você pode obter um bom desconto e ainda ajuda a manter o  Letras .  A sua ajuda é essencial para que este projeto permaneça online . László Krasznahorkai. Foto: Colin McPherson LANÇAMENTOS Chega aos leitores brasileiros Os itálicos são meus (1966), um dos principais registros da primeira onda da emigração russa, ocorrida logo após a Revolução de 1917 até meados dos anos 1920, e escrito por uma de suas representantes mais notáveis, a escritora e poetisa Nina Berbérova (1901–1993) . Berbérova nasceu em São Petersburgo e, realocando-se por diversas cidades, permaneceu na Rússia até 1922, quando deixou seu país de origem e migrou para a Europa ao lado de seu primeiro marido, o poeta Vladisláv Khodassiévitch (1886–1939), com quem passou temporadas na Alemanha, Tchecoslováquia e Itália. A partir de 1925, fixou residência em Paris, onde viveu por mais de duas décadas, até se mudar definit...

Debaixo de uma amendoim-acácia

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Por Tiago D. Oliveira Raoul Dufy, O baile popular (detalhe)  E há que se viver, mesmo sem conserto,  porque a vida é sempre tentativa.     — Carlos Drummond de Andrade Já é manhã de segunda-feira. Os carros seguem em direção à escola e eu sigo em outra. Entro na Filemon Andrade, sob os galhos de uma amendoim-acácia que se estica para tocar em minhas mãos. É uma manhã de primavera e me ponho a lembrar da madrugada anterior.  Está cada vez mais difícil aceitar um convite para sair à noite. Se for no meio da semana, chega a parecer quase uma ofensa, uma provocação. Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo que contar os dias para que chegasse logo a sexta-feira era o que hoje podemos chamar de “dar um scroll ”. Toda vez que preciso muito sair, ceder às convenções de uma vida minimamente social, coloco-me a pensar nos moradores de Tristão da Cunha, um pedacinho de terra no sul do oceano atlântico, onde moram pouco mais de 200 pessoas. Um dos lugares mais remotos...

Violette Leduc: Minha mãe nunca me estendeu a mão

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Por Karen Villeda  Violette Leduc. Foto: René Saint-Paul A convidada , de Simone de Beauvoir, um romance que descreve o caso amoroso da filósofa com uma de suas alunas, foi o livro que levou Violette Leduc a se aproximar da autora. Era 1945 e Paris acabara de ser libertada e ela, que conhecera a filósofa por meio de amigos em comum, logo enviou-lhe um manuscrito: era L’Asphyxie (A asfixia), seu primeiro romance publicado no ano seguinte. Na altura Simone de Beauvoir concordou em ler o material e ficou cativada desde o início. A primeira linha era extremamente poderosa: “Minha mãe nunca me estendeu a mão”. A autora de O segundo sexo decidiu compartilhar essa história de uma infância reprimida com Albert Camus. Os escritos de Leduc também conquistaram o gosto do escritor, sendo dele a iniciativa de publicá-lo na coleção Espoir, que então coordenava para a editora Gallimard. L’Asphyxie , no entanto, passou despercebido, apesar dos elogios que recebeu de figuras como Jean Cocteau e J...

O trágico e o belo em O homem elefante

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Por Juliano Pedro Siqueira “Os olhos não veriam o sol se não fossem parecidos com o sol e a alma não verá a beleza se ela não for bela.” — Plotino (205-270 d.C) A justa genialidade atribuída a David Lynch geralmente se associa as suas grandes produções da maturidade, como o seriado surrealista Twin Peaks na década de 1990 e filmes como A cidade dos sonhos  nos anos 2000. Mas sua profícua imaginação já dava sinais de grandeza dez anos antes, quando dirigiu o extraordinário O homem elefante ; talvez seu trabalho menos conhecido.   O filme retrata a trágica e bela história de Joseph Carey Merrick (1862-1890), um inglês da Inglaterra Vitoriana que em decorrência da sua deformação congênita era explorado em apresentações circenses como o “espetáculo da aberração”. Merrick desenvolveu uma anomalia física aos três anos de idade, provavelmente o que a ciência moderna classificou de Síndrome de Proteus — crescimento excessivo e desproporcional de tecidos e músculos —, caracterizada por...