Os contos de Natal de Charles Dickens
Por G. K. Chesterton
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| John Leech. Ebenezer Scrooge encontra o fantasma de Jacob Marley. Ilustração para A Christmas Carol, de Charles Dickens. |
O mistério do Natal é, de certa forma, semelhante ao mistério de Dickens. Se algum dia conseguirmos explicar adequadamente um, poderemos explicar adequadamente o outro. E, de fato, ao tratar de ambos, a ordem cronológica ou histórica deve, em certa medida, ser lembrada. Antes de abordarmos a questão do que Dickens fez pelo Natal, devemos considerar a questão do que o Natal fez por Dickens. Como foi que esse homem do agitado século XIX, repleto do senso comum quase arrogante da época utilitarista e liberal, passou a associar seu nome, principalmente na história literária, à perpetuação de uma festa meio pagã e meio católica, que ele certamente teria chamado de ultrapassada e poderia facilmente ter chamado de superstição? O Natal já havia sido celebrado antes na literatura inglesa; mas, nos casos mais notáveis, em conexão com aquele tipo de feudalismo com o qual Dickens rompera qualquer ligação com um desprezo ignorante e até excessivo. Sir Roger de Coverley celebrou o Natal; mas era um Natal feudal. Sir Walter Scott cantou em louvor do Natal; mas era um Natal feudal. E Dickens não era apenas indiferente à dignidade do velho cavalheiro rural ou à genial arqueologia de Scott; ele era até mesmo dura e insolentemente hostil a elas. Se Dickens tivesse vivido nas proximidades de Sir Roger de Coverley, sem dúvida, como Tom Touchy, estaria sempre “tendo a lei sobre ele”. Se Dickens tivesse se deparado com as antigas armaduras e os curiosos fólios do escritório de Scott, certamente teria dado ao seu colega romancista uma lição, sem rodeios, sobre a futilidade de tatear assim nas latas de lixo da velha opressão e do erro. Longe de ser um daqueles que gostam de algo por ser antigo, Dickens era um daqueles tipos mais grosseiros de reformadores, pelo menos em teoria, que na verdade detestam algo por ser antigo. Ele não era apenas o tipo mais virtuoso e radical que tenta erradicar os abusos; era também, em parte, aquele tipo mais suicida e radical que tenta se erradicar. Em teoria, pelo menos, ele não tinha uma concepção adequada da importância da tradição humana; em sua época, ela havia sido distorcida e falsificada, transformando-se em uma oposição à democracia. Na verdade, é claro, a tradição é a mais democrática de todas as coisas, pois a tradição é simplesmente uma democracia tanto dos mortos quanto dos vivos. Mas Dickens e seu grupo ou geração não compreendiam essa permanente posição; eles haviam sido convocados para uma guerra específica para corrigir injustiças específicas. Na medida em que uma instituição como o Natal era antiga, Dickens até tenderia a desprezá-la. Ele jamais conseguiria formular a questão corretamente: enquanto há coisas cuja antiguidade prova que estão morrendo, há outras cuja antiguidade apenas prova que não podem morrer. Se algum contemporâneo radical e amigo de Dickens lhe tivesse dito que, ao defender as tortas de carne picada e as pantomimas do Natal, ele estaria defendendo um ritualismo bárbaro e brutal, fadado a desaparecer à luz da razão junto com o Boy-Bishop e o Lord of Misrule, não tenho certeza se Dickens (embora fosse um dos mestres de resposta mais rápidos e eloquentes da história) teria achado fácil responder, com base em seus próprios princípios. Foi por um grande instinto ancestral que ele defendeu o Natal; por aquela subconsciência sagrada que chamamos de tradição, que alguns consideram algo morto, mas que na verdade é algo muito mais vivo do que o intelecto. Há um parentesco e uma irmandade obscuros em toda a humanidade, profundos demais para serem chamados de hereditariedade ou explicados de qualquer forma por fórmulas científicas; o sangue é mais denso que a água, especialmente no cérebro. Mas essa qualidade inconsciente e até automática na defesa que Dickens faz da festa de Natal, esse fato de que sua defesa poderia quase ser chamada de animal em vez de mental, embora em linguagem apropriada devesse ser chamada simplesmente de viril; tudo isso nos leva de volta ao fato de que devemos começar com a atmosfera do próprio assunto. Não devemos perguntar a Dickens o que é o Natal, pois, com todo o seu fervor e eloquência, ele não sabe. Em vez disso, devemos perguntar ao Natal o que é Dickens — perguntar como essa estranha criança do Natal veio a nascer fora de seu tempo.
Dickens dedicou seu gênio, de maneira um tanto especial, à descrição da felicidade. Nenhum outro escritor de sua eminência fez desse objetivo humano tão específico seu tema central. A felicidade é um mistério — geralmente um mistério momentâneo — que raramente se detém o suficiente para se submeter à observação artística e que, mesmo quando habitual, possui algo que torna a descrição artística quase impossível. Há vinte poetas menores e insignificantes que conseguem descrever de forma bastante impressionante uma eternidade de agonia; há muito poucos, mesmo entre os poetas eternos, que conseguem descrever dez minutos de satisfação. Não obstante, a humanidade, sendo meio divina, sempre se apaixonou pelo impossível, e inúmeras tentativas foram feitas desde o início da literatura humana para descrever um estado real de felicidade. De modo geral, creio que as mais bem-sucedidas foram as mais francamente físicas e simbólicas: as flores do Éden ou as joias da Nova Jerusalém. Muitos escritores, por exemplo, chamaram o ouro e o crisólito da Cidade Santa de um amontoado vulgar de joias. Mas quando esses críticos tentam descrever suas concepções de felicidade futura, sempre se trata de um disparate pretensioso sobre “planos”, “ciclos de realização” ou “espirais de evolução espiritual”. Ora, um ciclo é uma metáfora física tanto quanto uma flor do Éden; uma espiral é uma metáfora física tanto quanto uma pedra preciosa. Mas, afinal, um jardim é algo belo; enquanto isso não é necessariamente verdade para um ciclo, como se pode ver no caso de uma bicicleta. Uma joia, afinal, é algo belo; mas isso não é necessariamente verdade para uma espiral, como se pode ver no caso de um saca-rolhas. Nada se ganha abandonando as antigas metáforas materiais, que de fato insinuavam a beleza celestial, e adotando outras metáforas materiais que nem sequer sugerem a beleza terrena. Esse método moderno ou espiral de descrever a felicidade indescritível pode, creio eu, ser descartado. Houve também outro método, adotado por muitos homens de verdadeiro gênio poético. Era o método dos antigos poetas pastorais, como Teócrito. Foi de outro modo que se manifestou na elegância e na piedade de Spencer. Certamente se expressou nas pinturas de Watteau; e teve uma expressão muito simpática e até viril na Inglaterra moderna, na poesia decorativa de William Morris. Esses homens de gênio, de Teócrito a Morris, ocuparam-se em descrever a felicidade como um estado de certos seres humanos, a atmosfera de uma comunidade, o clima duradouro de certas cidades ou ilhas. Derramaram tesouros da mais pura imaginação ao descrever as vidas felizes e as paisagens da Utopia, da Atlântida ou do Paraíso Terrestre. Traçaram com a mais terna precisão os detalhes de suas árvores frutíferas ou as vestes reluzentes de suas mulheres; usaram toda a engenhosidade da cor ou da forma intrincada para sugerir seu deleite infinito. E o que eles sempre conseguiram sugerir foi sua infinita melancolia. William Morris descreveu o Paraíso Terrestre de tal forma que a única forte nota emocional que restava na mente era a sensação de quão desamparados seus viajantes se sentiam naquele estranho Elísio; e o leitor simpatizava com eles, sentindo que preferiria não apenas a Inglaterra elisabetana, mas até mesmo Camberwell, no século XX, a uma terra de sombras brilhantes. Assim, a literatura quase sempre falhou em sua tentativa de descrever a felicidade como um estado. A tradição humana, os costumes e o folclore (embora geralmente muito mais verídicos e confiáveis do que a literatura) raramente capturaram os símbolos de uma atmosfera genuína de camaradagem e alegria. Mas aqui e ali, emerge repentinamente a vibração da vox humana. Na tradição humana, essa nota apareceu sobretudo nas antigas celebrações do Natal. Na literatura, apareceu sobretudo nos contos natalinos de Dickens.
Na celebração histórica do Natal, tal como foi preservada desde os tempos católicos em certos países nórdicos (e lembremos que, nos tempos católicos, os países nórdicos eram mais católicos do que quaisquer outros), existem três qualidades que, a meu ver, explicam sua influência no sentido humano de felicidade, especialmente em homens como Dickens. Existem três características do Natal, digamos, que também são características da felicidade, e que pagãos e utópicos ignoram. Quando discutirmos quais são essas qualidades no contexto do Natal, ficará claro o quão importantes elas são na obra de Dickens.
A primeira qualidade, na minha opinião, é o que poderíamos chamar de qualidade dramática. A felicidade, neste caso, não é um estado de ser: é uma crise. O instinto humano cria todos os costumes antigos que envolvem a celebração do nascimento de Cristo de tal forma que enfatizam repetidamente essa qualidade crucial. Tudo é planejado para que toda a família sinta, se possível, a mesma sensação que experimenta quando realmente nasce uma criança em seu seio. É uma vigília, uma vigília com limites definidos. Todos ficam acordados até ouvirem os sinos. Ou tentam dormir, para poderem ver seus presentes de manhã cedo. Há limitações por toda parte, restrições: num momento a porta está fechada, e no seguinte, aberta. Chegou a hora, ou não; os pacotes são abertos, ou não: os presentes de Natal não se modificam. Essa qualidade clara e teatral da alegria, com a qual o instinto humano e a engenhosidade natural do mundo tão sabiamente dotaram as celebrações populares de Natal, é também uma qualidade essencial da literatura romântica de Dickens. Na literatura romântica (isto é, na literatura que perdura), os protagonistas devem ser felizes, é claro, mas também devem ser inesperadamente felizes. Esta é a primeira ligação entre a literatura e a antiga festa religiosa; é o primeiro vínculo entre Dickens e o Natal.
O segundo elemento presente em todas essas festas e em toda essa literatura é representado de forma ideal pelo simples fato de o Natal ser celebrado no inverno. É o elemento não só do contraste, mas também do antagonismo. Preserva o melhor da versão meramente primitiva ou pagã dessas cerimônias, desses banquetes. Estamos nos divertindo, mas estamos nos divertindo como guerreiros. Carregamos sobre nossas cabeças, por assim dizer, os escudos e machados de batalha com os quais devemos lutar contra os gigantes da neve e do granizo. O homem escolhe ser mais alegre justamente no momento em que todo o universo material se encontra em seu momento de maior tristeza. Esse contraste, esse desafio místico, é o que confere às antigas festas de inverno sua qualidade viril e realista, uma qualidade que não se encontra na felicidade ensolarada do Paraíso terrestre. E esse curioso elemento se estende até mesmo a todas as piadas e tarefas triviais que sempre cercaram ocasiões como essa. O objetivo dos costumes festivos não era tornar tudo artificialmente fácil; pelo contrário, era tornar tudo artificialmente difícil. O princípio fundamental do idealismo não se expressa apenas atirando uma flecha nas estrelas; também se expressa colocando um pernil no topo de um mastro ensebado. Em todas essas observâncias, há uma qualidade que só pode ser definida como a qualidade da obstrução divina. Por exemplo, o jogo do snapdragon,¹ um admirável passatempo, baseia-se na ideia de que as passas têm um sabor muito melhor se pensarmos nelas como pedaços de ferro que tiramos do fogo. Há algo um pouco mais nobre em tudo o que é natalino, mesmo que apenas mais nobre na forma e na teoria, do que o mero conforto; até mesmo os espinhos do azevinho incomodam. Não é difícil entender a conexão entre esse tipo de instinto histórico e um escritor romântico como Dickens. O romancista sensato deve sempre jogar o snapdragon com seus protagonistas; deve sempre salvar o herói e sua amada do fogo como se fossem passas.
E o terceiro elemento do Natal é o grotesco. O grotesco é a expressão natural da alegria; e em todas as Utopias e os novos Édens dos poetas não conseguem transmitir uma genuína impressão de prazer, principalmente porque omitem o grotesco. Nas Utopias modernas, o homem não pode ser feliz; ele é muito sério. Um homem de Morris na Terra do Paraíso não pode estar verdadeiramente bem; é demasiado decorativo. Os seres humanos reais, quando experimentam um deleite genuíno, tendem a expressá-lo através do grotesco — eu diria quase através de goblins. Na véspera de Natal, pode-se falar de fantasmas, se forem fantasmas feitos de abóboras. Não é permitido (ou assim espero, no caso de famílias decentes) falar de corpos astrais na véspera de Natal. A cabeça de javali dos Natais de outrora era tão grotesca quanto a cabeça de burro de Bottom, o Tecelão. Mas existe apenas um grupo de goblins capaz de expressar a benevolência feroz do Natal. São as personagens de Dickens.
Os poetas e pintores arcádicos tentaram expressar a felicidade através de figuras belas. Dickens compreendeu que a felicidade se expressa melhor através de figuras feias. Talvez haja algo na beleza que se assemelhe à tristeza; certamente há algo semelhante à alegria no grotesco, até mesmo no grosseiro. Há algo misteriosamente associado à felicidade não apenas na corpulência de Falstaff e Tony Weller, mas até mesmo no nariz vermelho de Bardolph ou Stiggins. O belo sempre inspira — é objeto de eterna meditação. O feio é, estritamente falando, uma causa de eterna alegria.
Todos os livros de Dickens são livros de Natal. Mas uma continua sendo a mais verdadeira entre os seus dois ou três famosos “livros natalinos” propriamente ditos: Uma canção de Natal, Os sinos e O grilo da Lareira. Dos três, Uma canção de Natal é sem comparação o melhor, bem como o mais popular. De fato, Dickens é popular num sentido tão profundo e espiritual que, ao contrário da maioria dos escritores, suas melhores obras tendem a ser as mais populares. Ele mais conhecido pelo Sr. Pickwick; aliás, é principalmente pelo Sr. Pickwick que ele merece ser conhecido. Em todo caso, a qualidade de Uma canção de Natal serve como exemplo das generalizações que já fizemos. Se estudarmos a atmosfera tão realista de alegria e de caridade desenfreada em Uma canção de Natal, veremos que as três características que mencionei são inequivocamente visíveis. Uma canção de Natal é, antes de tudo, uma história alegre, porque descreve uma mudança abrupta e dramática. Não é apenas a história de uma conversão, mas de uma conversão repentina, tão repentina quanto a conversão de alguém que frequenta uma reunião do Exército da Salvação. A religião popular tem razão ao insistir na existência de uma crise na maioria das coisas. É verdade que o homem na reunião do Exército da Salvação se converterá para abandonar o álcool, enquanto Scrooge se converte para abraçá-lo. Isso simplesmente significa que Scrooge e Dickens representam um Cristianismo mais elevado e histórico. Mas, em ambos os casos, a felicidade é justamente valorizada porque sucede dramaticamente a infelicidade; a felicidade é valorizada porque é “salvação”, algo resgatado de um naufrágio.
Uma canção de Natal deve muito de seu humor à nossa segunda característica: o fato de ser um conto de inverno, e um muito invernal. A história fala muito do bem-estar; mas esse bem-estar nunca é debilitante, graças à atmosfera amargamente revigorante. Finalmente, a história exemplifica consistentemente o poder do terceiro princípio — a relação entre alegria e o grotesco. Todos são felizes porque ninguém é circunspecto. Temos a impressão, sem saber como, de que Scrooge é ainda mais feio quando é bondoso do que quando era cruel. O peru que Scrooge compra é tão gordo, segundo Dickens, que é impossível ficar em pé. Esse peru desequilibrado e monstruoso serve como símbolo da felicidade desequilibrada nas histórias.
É menos proveitoso criticar detalhadamente os outros dois livros, pois representam variações sobre o tema em duas direções diferentes; e variações que, no geral, não foram melhoradas. Os Sinos é um monumento à honrosa qualidade de Dickens de ser combativo. Ele não conseguia admirar nada, nem mesmo a paz, sem querer ser belicoso a respeito. E assim deveria ser.
Notas da tradução:
1 Trata-se de um jogo antigo que consiste em colocar passas num prato, cobri-las com conhaque e colocar fogo e depois retirar as passas do fogo com os dedos e comê-las, tentando não se queimar.
* Este texto é a tradução livre de “Christmas Books” e é parte das diversas apreciações e críticas desenvolvidas por G. K. Chesterton em torno da obra de Charles Dickens. A versão original, e outros textos, estão disponíveis aqui.
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