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Mostrando postagens de junho, 2025

Os erros de Borges. A estrangeira e o nome de Deus

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Por Eduardo Galeno Rafael. Averróis, detalhe de  A Escola de Atenas.   Não sei onde li, mas a linguagem é erro. A literatura, no ínterim, transfere esse erro para a ponta de um determinado discurso. Ela consiste em dizer, não falar, montar, deslocar, não transmitir. É o que se apresenta como discurso total. No ângulo pretendido ou sugerido por ela (a estrangeira nas palavras de Foucault), há a passagem da letra ao literário. Mas onde exatamente? Como é possível a determinação ou, melhor, a exclusão? O que faz as palavras tragédia e comédia serem o que são e representarem do jeito que são representadas? Certamente, na interpretação de Borges da vida — vida mais que obra, mas vida também como obra — de Averróis, ele se condicionou a investigar a barreira entre a res e a res ficta . Barreira que significa, é evidente, o percurso instrumental da natureza e da cultura (se há uma separação), que preconiza os sentidos, as intuições e as inferências. Averróis mesmo teve várias tra...

Cinco poemas de Wallace Stevens

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Por Pedro Belo Clara Wallace Stevens: Foto: Sylvia Salmi     O BONECO DE NEVE ( Harmonium , 1923)   É preciso que a mente se faça Inverno Para olhar o frio e os ramos Dos pinheiros encrostados de neve   E ter tido frio durante muito tempo Para ver os juníperos, hirtos de neve, Os toscos abetos no distante brilho   Do sol de Janeiro; e sob o som Do vento não pensar em dor alguma, O som das poucas folhas,   Que é o som da terra, Cheia do mesmo vento Que sopra no mesmo deserto lugar   Para o ouvinte, que ouve na neve E, nada sendo, nada vê do que Ali não está e vê o nada que está.     COMO VIVER. QUE FAZER ( Ideas of Order , 1935)   Ontem a lua nasceu por cima deste rochedo. Impura sobre um mundo inexpurgado. O homem e a sua companheira pararam Para repousar face à heróica altura.   Frio, o vento caiu sobre eles Por entre sons de grande majestade: Eles que tinham deixado o sol de estranha chama Buscando um sol de fogo mais inteiro. ...

Boletim Letras 360º #645

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DO EDITOR   Na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste boletim, você tem desconto e ainda ajuda a manter o Letras . Alexandre Dumas (pai). Foto: Prudent Rene-Patrice Dagron   LANÇAMENTOS   Edição inédita no Brasil do único romance abolicionista de Alexandre Dumas, que declara seu compromisso com seus “irmãos de raça e amigos de cor” .   Alexandre Dumas ajudou a construir o imaginário da literatura ocidental com Os três mosqueteiros e O conde de Monte Cristo . Porém, antes da fama literária, Dumas publicou, em 1843, Georges , um romance com temática abolicionista e protagonizado por um “orgulhoso mulato” que se alia aos escravizados nas Ilhas Maurício, então uma colônia francesa, para sonhar um “futuro de vingança e liberdade”, entrando numa guerra mortal contra o preconceito e a escravidão. Dumas, orgulhosamente neto de uma africana cujo sobrenome adotou como parte do seu nome artístico, não se ocupou apenas das intrigas e disputas na Corte f...

Aleksandr Soljenítsyn e Os invisíveis

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Por Mary Carmen Ánchez Ambriz Aleksandr Soljenítsyn. Arquivo Centro  Aleksandr Soljenítsyn.   Um dos poucos livros que mudaram a história é Arquipélago Gulag (1973), de Aleksandr Soljenítsyn. Foi assim que Octavio Paz e outros intelectuais o assimilaram, expressando seu desencanto com o socialismo da União Soviética.   Tchekhov já havia dito que grandes escritores deveriam falar de política “para defender o povo da política”. Se em O pavilhão dos cancerosos Soljenítsyn já havia deslumbrado seus leitores ao se referir ao câncer como a doença do espírito que é o Estado totalitário, em seus títulos subsequentes continuou com um retrato fiel da repressão que se vivia durante o regime soviético. Ele não se importava em arriscar a própria vida; continuou escrevendo clandestinamente, com o apoio de um grupo de amigos que acreditavam nele, a quem chamava de “Os invisíveis”. Quem eram esses invisíveis? Como apoiavam o escritor? Quantas vezes arriscaram ser encontrados pelo ICGB?...

O muro de pedras, de Elisa Lispector

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Por Pedro Fernandes Elisa Lispector. Foto: Gil Pinheiro. Arquivo da revista  Manchete . Restaurada com IA. “Estou sempre começando, para em seguida terminar, e recomeçar de novo, os elos partidos, um não chegando a emendar no outro.” A conclusão, de muitas de sentido semelhante levantadas por Marta, protagonista de O muro de pedras , é também uma revelação sobre o movimento da narrativa que perfaz o curso existencial de uma mulher entre a sua primeira idade adulta até a velhice. O curso do romance de Elisa Lispector é feito de pura sondagem psicológica e analítica, o que coloca sua obra nas primeiras fileiras do modelo existencialista bastante cultivado pela literatura no seu tempo.   Nos romances herdeiros do existencialismo o enredo se esboroa; o que importa à narração é alinhavar recortes precisos, marcadamente os encharcados da angústia anterior ao instante de epifania, este que uma vez consumado entra outra vez na circularidade dos volteios psicológicos do indivíduo obse...

Resistir, reconstruir e nomear, o ethos de No Other Land

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Por Alonso Díaz de La Vega O documentário é o gênero palestino por necessidade. Por razões óbvias, na Cisjordânia e em Gaza, é praticamente impossível estabelecer uma indústria cinematográfica que abranja musicais e melodramas intimistas. Conhecemos a ficção, é claro, da diretora feminista libanesa Heiny Srour ou da estrela contemporânea Elia Suleiman — um viajante sem rumo fixo, como sugere seu último filme, O paraíso deve ser aqui (2019) —, mas as condições pendem a balança para o outro lado. Além disso, há uma coincidência com as necessidades políticas dos cineastas: o amadorismo inerente a certos documentários sempre sugere um testemunho; o gênero aproveita o que lhe aparece e, diferentemente da ficção, não cria imagens, mas as captura. Há, é claro, casos e casos, mas na Palestina não há outra opção: o cinema é quase sempre feito para deter o avanço da ocupação israelense.   Em 2011, Cinco câmeras quebradas registrou a vida e a morte de cinco dispositivos que haviam captura...

Pertinente, atual e anêmico: De onde eles vêm, de Jeferson Tenório

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Por Vinícius de Silva e Souza   Já consagrado e praticamente uma celebridade, Jeferson Tenório se viu na difícil missão de entregar o “segundo livro” — aspas pelo medo comum de quem faz estreia arrebatadora mas também pelo fato de O avesso da pele não ser o seu primeiro livro —carregando uma expectativa imensa nas costas, uma vez que é portador de um Jabuti e de vendas consideráveis de seus outros romances. E o que se lê é um resultado pertinente, atual e ao mesmo tempo anêmico.   Esse é um incômodo pessoal, mas também não é: as narrações em primeira pessoa em formato de relato são limitadoras. Tenório faz um exercício narrativo muito bom em O avesso da pele , com o uso da segunda pessoa, mas entrega um descompasso grande em Estela sem Deus , com uma narrativa que começa em lugar nenhum para se encerrar em nenhum lugar. E o mesmo ocorre com De onde eles vêm — mas nem tanto: Joaquim é introduzido na narrativa quando ingressa na universidade pelo sistema de cotas e já se defro...