José Saramago escreve sobre Lygia Fagundes Telles



No último mês, o Instituto Moreira Salles deu a conhecer outra edição de sua fabulosa publicação que reúne, num material de altíssima qualidade visual, gráfica e conteudística, dossiês sobre alguns dos nomes mais importantes da nossa literatura. A publicação chama-se Cadernos de Literatura Brasileira e é apresentada desde 1996, constituindo-se, desde já, em material obrigatório de informação e formação sobre nossos escritores e parte no panorama de nossa memória cultural.  

A edição saída agora homenageia a escritora Lygia Fagundes Telles (a jovem mostrada no registro que abre esta postagem). Autora de uma vasta, significativa e bem-desenhada obra, que transita entre o conto e o romance. Sobre sua literatura, Antonio Candido, outro dos nossos expoentes, já disse que tem o mérito de obter "a limpidez adequada a uma visão que penetra e revela, sem recurso a qualquer truque ou traço carregado na linguagem ou na caracterização". 

O que me chamou atenção neste número, claro, é a apresentação de um depoimento do meu estimado (já sabem) José Saramago; acrescenta-se algo mais na minha não tão antiga descoberta sobre a amizade dos dois que eu gostaria de partilhar com outros leitores. É este breve, mas singular texto, que copio a seguir para os que frequentam o Letras in.verso e re.verso. (Pedro Fernandes)

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Embora ela esteja a mil léguas de o imaginar, existe um sério problema no meu relacionamento com Lygia Fagundes Telles: não consigo lembrar-me de quando, de onde e de como a conheci. Alguém me dirá que o problema (supondo haver motivos suficientes para o designar assim) não tem uma importância por aí além, que é por de mais frequente, ai de nós, confundir-se-nos a frágil memória quando lhe requeremos exatidão na localização temporal de certos antigos episódios - e eu estaria de acordo com tão sensatas objeções se não se desse a intrigante circunstância de achar que conheço Lygia desde sempre. Não preciso que me venham dizer que tal coisa é impossível: efetivamente, a primeira vez que este lusíada pôde viajar ao Brasil foi há uns escassos quinze anos; além disso, tem a certeza de não ter visto Lygia nessa ocasião, como também não crê tê-la encontrado antes, em qualquer das viagens que ela fez a Portugal. Mas o que aqui importa, sobretudo, é que mesmo que conseguisse determinar, com precisão rigorosa, o dia, a hora e o minuto em que apareci a Lygia pela primeira vez ou ela me apareceu a mim, estou certo de que ainda nesse caso uma voz haveria de sussurrar-me de dentro: "A tua memória enganou-se nas contas. Já a conhecias. Desde sempre que a conheces."

Recentemente, estava eu a folhear alguns dos livros de Lygia Fagundes Telles que desde há muito (mas não desde sempre) me acompanha na vida, a afagar com os olhos páginas tantas vezes soberbas, quando me detive nessa autêntica obra-prima que é o conto "Pomba Enamorada". Reli-o uma vez mais, palavra a palavra, sílaba a sílaba, saboreando ao de leve a pungente amargura daquele mel, quase tocando com os dedos a lágrima subtil da sua ironia, e num instante luminoso pensei que talvez a "vizinha portuguesa", a mulher sem nome nem vulto que no conto prepara um reconstituinte ("A menina está que é um osso!") à sofredora mas fiel apaixonada - talvez essa mulher, simplesmente por ser portuguesa e generosa, tivesse sido, sem que eu me apercebesse na primeira vez que li a história, a causa primeira dessa outra espécie de "vizinhança" que desde então, isto é, desde sempre, me pôs a morar ao lado de Lygia. O tempo tem razões que os relógios desconhecem, para o tempo não existem o antes e o depois, para o tempo só existe o agora. 

O mais interessante, em tudo isto, é que os nossos encontros têm sido espaçados, muito de longe em longe, e, em cada um deles, as palavras que um ao outro dissemos poderiam ser taxadas de tudo menos de prolixidade. Provavelmente não falamos muito porque só dizemos o que precisava de ser dito, e o sorriso com que então nos despedimos será, de certeza, o mesmo que teremos nos lábios no dia em que as voltas da vida tornarem a colocar-nos frente a frente. Recordo que quando mais tempo pudemos conviver foi num já longínquo outubro, em 1986, em Hamburgo, por ocasião de uma Semana Literária Ibero-Americana em que também participaram (sob a bênção de Ray-Güde Mertin, que nos pastoreava a todos), pelo lado brasileiro, Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Lygia Bojunga Nunes, e, do lado português, Lídia Jorge, Teolinda Gersão, Almeida Faria e Luís de Sttau Monteiro. A Secretaria de Cultura de Hamburgo tinha-nos metido numa pensão do chamado tipo familiar que, apreciada no geral, nos pareceu de aceitável comodidade, mas logo vimos que sofria de imperdoáveis mazelas no particular: quartos pouco maiores que uma cabina telefónica, outros, ou os mesmos, sem casa de banho própria, obrigando os irritados hóspedes, de roupão, pijama, chinelos e toalha dobrada no braço, a esperarem a sua vez no corredor. Finalmente, depois de dois dias de uma dura batalha travada por Ray-Güde contra a má vontade da gerência e a insensibilidade da burocracia municipal, os quatro ou cinco ibero-americanos mal-amados pelo deus das estalagens (eu, entre eles) foram amnistiados e transferidos para instalações mais dignas. A lembrança que conservo de Hamburgo e dos amigos lá encontrados ou reencontrados não se me apagará nunca. Participámos em sessões conjuntas, entrámos em debates, ajudámo-nos uns aos outros, rimos, folgámos e bebemos, sobretudo não dramatizámos as diferenças na hora da discussão - entre escritores portugueses e brasileiros só por má-fé e cínica estratégia alheias se instalará a discórdia. Recordo a hora do café da manhã, com o sol outonal a entrar pelas janelas. Ao redor da mesa, o riso dos novos não soava mais alto nem era mais alegre que o dos veteranos, os quais, por terem vivido mais, gozavam da vantagem de conhecer mais casos, tanto próprios quanto de estranhos. Não é ilusão minha de agora a imagem de terna atenção com que todos nós, portugueses e brasileiros, escutávamos o falar de Lygia Fagundes Telles, aquele seu discorrer que às vezes dá a impressão de se perder no caminho, mas que a palavra final irá tornar redondo, completo, imenso de sentido.

Disse que conheço Lygia desde sempre, porém, a medida deste sempre não é a de um tempo determinado pelos relógios e pelas ampulhetas, mas um tempo outro, interior, pessoal, incomunicável. Foi na minha última e recente viagem ao Brasil, em São Paulo, que, conversando com Lygia sobre a memória, o pude compreender melhor que nunca. Para explicar-lhe o meu ponto de vista sobre o que chamei então a instabilidade relativa da memória, isto é, a múltipla diversidade dos agrupamentos possíveis dos seus registos, evoquei o caleidoscópio, esse tudo maravilhoso que as crianças de hoje desconhecem, com os seus pedacinhos de vidro colorido e o seu jogo de espelhos, produzindo a cada movimento combinações de cores e de formas variáveis até ao infinito: "A nossa memória também procede assim", disse, "manipula as recordações, organiza-as, compõe-as, recompõe-as, e é, dessa maneira, em dois instantes seguidos, a mesma memória e a memória que passou a ser". Não estou muito seguro quanto à pertinência da poética para, de uma vez, tentar explicar por que insisto em dizer que conheço Lygia desde sempre. Apenas porque acho que ela é aquele pedacinho de vidro azul que constantemente reaparece..."          

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