Enigma e sedução em A Hora dos Ruminantes: a originalidade de José J. Veiga

Por Leila D. P. do Amaral



A obra de José J. Veiga abre-se a uma multiplicidade de vozes – do historiador, do cientista social, do crítico literário etc. Lendo-a, somos convidados a uma participação ativa, a um processo de conhecimento e reconhecimento das realidades vividas pelos seus personagens. Ao criar um ambiente de mistério e de perplexidade, sua obra nos instabiliza para uma dimensão interrogativa, para uma atitude de rebelião. Já não queremos ser apenas leitores. O impulso provocado por ela é no sentido de sermos autores da escrita de nossa própria existência, reconhecendo os condicionantes objetivos e subjetivos para a realização da mesma.

Na verdade, José J. Veiga é, se considerarmos que a linguagem é a fundadora da cultura e da sociedade e, portanto, da própria ciência, o escritor, o artesão da literatura, e, de certa forma, “um homem de ciência”.

O local e o universal se dispõem, se compõem e se recompõem no artesanato literário da obra de Veiga. Penetrar no mesmo significa estar disposto a alçar voos estonteantes e ao mesmo tempo mergulhos abissais, pois sua literatura parte da fundante realidade vivida e retorna para a mesma, transfigurando-a, ressignificando-a, reconstruindo-a.

Veiga junta-se a todos aqueles escritores que mergulham no âmbito de regiões da realidade, onde a imensa maioria dos seres humanos vislumbra apenas a superfície. Daí a profundidade colossal de sua narrativa poética. Buscar acompanhá-lo, nos interstícios e recônditos de suas alegorias, pode ser uma caminhada ao mesmo tempo frustrante e compensadora, já que o inevitável é ter de se defrontar com sua densidade. Mesmo assim somos incitados a esse mergulho.

Essas afirmações sobre a literatura de José J. Veiga, no entanto, não devem ser confundidas com uma mera exaltação ao seu gênio criativo, mas entendidas como um registro das inúmeras tomadas e retomadas de sua obra, por parte de várias áreas do conhecimento, culminando numa inumerável e prodigiosa diversidade de direções e interpretações da mesma.



Dentre seus inúmeros romances, percebemos A Hora dos Ruminantes, editada em 1966, como  a obra de José J. Veiga que traz em seu interior a mais  contundente expressão da invasão de formas de sociação típicas da vida moderna, em espaços onde ainda predominam relações sociais pautadas em valores tradicionais. O invasor, em dados momentos, é representado simbolicamente por cachorros e bois ou por estrangeiros que vêm realizar “obras”, provocando uma inquietude pessoal e coletiva, diante de um tipo de situação que assola o espaço da gente de bem, que vivia sossegada, e, de repente, se vê às voltas com um novo sistema, ao qual seu conhecimento não tem acesso.

A cidade de Manarairema e seus moradores se desvelam em imagens emblemáticas, no rico imaginário da obra de Veiga, do processo que se inicia, por exemplo, nas primeiras décadas do século XX e atinge seu auge na década de 60, com a instauração da ditadura militar. Nesse processo, as formas modernas de sociação se instalam transformando a consciência das pessoas e suas relações umas com as outras. Essas relações passam a ser fundadas na “economia do dinheiro”, na impessoalidade, na superficialidade, na competitividade, na objetividade, enfim, relações sociais tipicamente modernas.

Os moradores de Manarairema, ao mesmo tempo que vivem o estranhamento e a rejeição que essas novas formas de sociação provocam, sentem-se atraídos, num jogo em que enigma, resistência e sedução se entrecruzam e nos revelam o caráter ambíguo da modernidade de que nos fala Marshall Berman em Tudo que é sólido desmancha no ar – a aventura da modernidade: ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos.

Ao afirmar que Manarairema iria sofrer a noite, no início do romance, Veiga já antecipava o quão violento e doloroso seria, para as pessoas do lugar, absorver aquele novo modo de vida, perder a referência que lhes trazia alguma segurança e ver o mundo familiar da proximidade, da afetividade e da similitude, transformar-se num mundo competitivo, opressor e contraditório.

Mas, incrivelmente otimista e percebendo nos homens a capacidade de condução e resolução dos seus dilemas e de sua história, Veiga nos revela outros sentidos que nos remetem a uma dimensão reflexiva mais ampla. Manarairema jamais seria a mesma, mas as horas voltavam a bater, as boas e as más, como deveria ser. Saberiam seus moradores aproveitar as lições? Muitos caminhos se abrem, bem como muitas possibilidades, marcando avanços e retrocessos num movimento tenso e contraditório de várias influências e convivências de novas estruturas e outras que insistem em sobreviver.

Enfim, queremos destacar José J. Veiga e sua obra, pois percebemos que o reconhecimento que lhe é devido, entre os grandes literatos de seu tempo, ainda não se manifestou como deveria. O reconhecimento de uma linguagem que nos impulsiona para uma percepção da realidade que está para além daquele encanto que nos entorpece e paralisa, mas sim que nos revigora e anima. Uma linguagem que nos transporta para além dos limites do cotidiano, mas também do racionalizante e do cientificista. Uma linguagem fruto de uma capacidade criativa incomum e inovadora que nos leva, junto com ele, a sermos plasmadores de novas sociabilidades, de novas realidades.

***


Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás – UFG; Mestrado em Sociologia da Cultura, também pela UFG; Doutorado em Sociologia da Cultura pela Universidade de Brasília – UnB. Atualmente realizando Pós- doutorado na Universidade da Beira Interior – UBI – em Portugal.

Comentários

rui de sousa maqrues disse…
Li o livro "A Hora do Ruminantes", nos anos setenta, e adorei .

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