Os sonetos de Walter Benjamin



De todos os ensaístas não resta dúvida que nenhum é mais influente nas últimas décadas do século XX e ainda em nossos dias que Walter Benjamin; não apenas porque sua inteligência seja adorável mas pela dificuldade de saber exatamente quem foi esse homem. Cronista da Paris de Baudelaire, de sua própria Berlim e autor de um conceito fluido sobre a modernidade no qual centenas de professores têm bebido, teórico da reprodução da obra de arte na era técnica, tema que logo o fez tornar-se aprendiz de bruxo ao qual confiam todos os que buscam salvar o marxismo de sua morte apesar de seu angelismo ser mais uma poética que uma política. Benjamin, judeu integrado e por isso europeu capitalista, se converteu, graças à bendição de mãos impolutas como as de Gershom Scholem, em judeu absoluto.

Teólogo sem ter religião, herói marcado por uma morte em fuga que fez do lugar, a fronteira de Portbou onde se suicidou em 1940 entre a França e a Catalunha, uma romaria, incluindo uma tumba falsa. Há um mal Benjamin – é preciso admitir: aquele que colaborava sem maiores escrúpulos com a Enciclopédia Soviética, pois segundo Marcel Reich-Ranicki, se por crítico literário se entende, restritamente, o autor de resenhas, este grande ideólogo do moderno foi, frequentemente, um péssimo resenhista literário, laborioso frente a trivialidades e obediente, seguramente por questões financeiras, ante aos pedidos, às vezes absurdos, de seus editores.

É quase impossível retirar Benjamin do altar dos modernos; e embora sua obra seja, em certo sentido, um fracasso monumental por culpa do nazismo, que o forçou a fugir para salvar sua vida, o autor de Infância em Berlim por volta de 1900 nunca deixa de nos surpreender. Seu calcanhar de Aquiles está em ser inesgotável. Se cada geração lê à sua maneira os clássicos, Benjamin, toda comunidade universitária o interpreta ao prazer da moda em curso, o que pouco importa, pois sua natureza polimorfa acaba livrando da temida má interpretação que é considerar a literatura a continuação da guerra por outros meios.

Pois se algo faltava, apareceu em português Os sonetos de Walter Benjamin (Portugal, Campo das Letras, 1999), cuja existência não é desconhecida mas pouco havia sido editado como uma obra independente como fez o poeta português Vasco Graça Moura, seu tradutor. Estamos ante a janela mais misteriosa das relações de Benjamin, dizem seus mais recentes biógrafos (Eiland e Jennings), a firmada com o jovem Friedrich C. Heinle (1894-1914), um poeta de dezenove anos, e sua companheira Rita Seligson que se suicidaram no dia 8 de agosto, às vésperas da Primeira Guerra Mundial a cujo chamado para a front o autor de Passagens por sorte conseguiu escapar.

Vasco Graça Moura conta que os textos foram descobertos na Bibliothèque Nationale de Paris, em 1981, com outros manuscritos que Benjamin confiara a George Bataille, em 1940, pouco antes do suicídio. “O patético desta obra não está apenas em o autor não ter chegado a revê-la e a organizá-la definitivamente, porventura reduzindo-a em extensão e aumentando-lhe desse modo a eficácia estética, pois há toda uma série de sonetos muito belos. Está também em ela ter ficado por mais de sessenta anos sem ser conhecida, e portanto sem ter podido gerar qualquer espécie de influência ou discussão na produção literária do seu tempo”.

Os sonetos de Benjamin são poemas de amor. Embora haja momentos que em nossa época possam ser sublinhados, sem dúvidas e com lápis vermelho, como homoeróticos, parece que o interessante desta amizade profunda, sexual ou não sexual, é um tipo de amizade masculina muito própria de boa parte do século XIX e notável durante a Belle Époque, cuja sublimação pode-se ler em Narciso e Goldmund (1930), um dos grandes romances do suíço de língua alemã Herman Hesse (1877-1962) cujo imenso e merecido sucesso o condenou com injustiça ao esquecimento. Hesse, Prêmio Nobel, foi um cantor da amizade masculina, nascida na adolescência como uma sorte de cordão umbilical entre gêmeos que as mulheres e depois delas a guerra, a política ou a religião, cortam. Frederic Moreau e Charles Deslauriers, os amigos inseparáveis em A educação sentimental, de Flaubert, se surpreenderiam muito se suspeitassem deles como gays. “Nós os vitorianos”, diria Michel Foucault.

O amor de Benjamin – homem de mulheres – pelo malgrado Heinle provocou a paciente feitura destes sonetos aspirantes à perfeição, rimados, tendo os Shakespeare como modelo mas assimiláveis à escola então predominante de Stefan George e mesmo a Hölderlin; escritos antes (Benjamin conheceu Heinle no movimento estudantil). e depois da morte do amigo são também de dor.

Há alguns poemas de pura beleza. Um deles, diz:

Vê minha vida à luz da protecção 
que dás disposta a dar-se por amor 
e quando a mãe te deu à luz com dor 
o espírito adensou-se nela então 

o mesmo que em espigas pelo verão 
a negra fronte bela foi compor 
de inverno em voz amarga acusador 
a cuja vista as lágrimas virão 

Meu amor em teu corpo se cinzela 
e dele os outros seres recebem vida 
perante ti criança os que da ferida 

sangram exposta ao mundo que flagela 
A mim foste mais bálsamo porém 
do que as curas balsâmicas que tem. 


Aqui, mais explícito:

Perguntaste se eu amo o meu amigo? 
como rompendo um demorado açude 
na tua voz quis hausto que transmude 
todo o cristal dos ímpetos consigo 

Neste meu choro enevoado abrigo 
pôs-me a palavra o peito em alaúde 
que uma doce pergunta tua ajude 
no sim furtivo que eu levei comigo 

Mas a meu lábio lento em confessar-se 
um mestre inda melhor o cunharia 
A mão que a seu amigo hesita em dar-se 

ele a tomou o que mais firme a guia 
para que ao coração secreto amando 
ao mundo todo em rimas o vá dando.


Sim, há muito o que buscar ainda nesse universo vasto que é Benjamin. 

Além dos poemas aqui apresentados, preparamos um catálogo com mais cinco sonetos de Walter Benjamin.



* Este texto foi escrito graças às ideias de Christopher Domínguez Michael em "Los sonetos de Walter Benjamin", publicadas no jornal El Universo, e ao prefácio de Vasco Graça Moura para "Os sonetos de Walter Benjamin" (Campo das Letras, 1999).

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