William Morris: como um grande pensador e poeta foi negligenciado por conta do seu papel de parede

Por Serena Throwbridge 

William Morris. Foto: Frederick Hollyer


 
Os obituários e reminiscências que se seguiram à morte de William Morris referem-se a ele como um grande poeta, pensador e incansável trabalhador a serviço da humanidade, assegurando sua reputação de “o homem mais completamente dotado do século XX”. É talvez irônico, então, que ele seja mormente lembrado apenas por populares designs em papéis de parede, panos de prato e roupas para o dia a dia.
 
O médico de Morris afirmou que a causa da morte foi “simplesmente ser William Morris e ter trabalhado mais do que dez homens comuns”. Ele teve uma educação privilegiada perto de Londres. Era frequentemente visto cavalgando seu pônei vestindo uma diminuta armadura, emulando os contos medievais de cavalaria que lia com entusiasmo. Sua infância, sucedida pela Marlborough School e por Oxford, imbuiu-lhe de um amor pela paisagem inglesa, por objetos históricos e por histórias que o influenciaram ao longo de toda a sua vida.
 
Apesar de seus designs, baseados em formas naturais tais como flores e pássaros, terem estabelecido seu negócio, o verdadeiro trabalho de Morris estava na mente.
 
Morris fundou a Sociedade para a Proteção de Edifícios Antigos e a Liga Socialista. Mas, ao lado dessas atividades públicas, Morris era um poeta, e um bastante popular. Ele chegou mesmo a recusar o papel de poeta laureado que foi lhe foi oferecido em 1891. Para Morris, a poesia era um resultado natural dos seus interesses e do seu desejo por compartilhar suas ideias com o mundo.
 
Morris, o poeta
 
The Earthly Paradise [O Paraíso Terrestre; sem tradução brasileira] (1868-1870) fez muito sucesso quando publicado e foi responsável por estabelecer a reputação de Morris como um dos grandes poetas de seu tempo. No entanto, o livro perdeu muito de seu prestígio mais recentemente. Isso se deve, talvez, à sua desalentadora extensão para os leitores modernos.
 
Composto por 12 livros – um para cada mês do ano – com prólogo e epílogo, trata-se de um poema épico, inspirado por extensas obras poéticas precedentes como a Odisseia e os Contos da Cantuária.
 
The Earthly Paradise segue um grupo de guerreiros nórdicos que se põe a escapar da praga em busca de uma nova terra “onde ninguém envelhece”. Em sua jornada, chegam a uma “cidade sem nome no mar longínquo” habitada por descendentes dos antigos gregos. Nessa altura, todavia, os viajantes já envelheceram. Eles decidem fixar-se ali pacificamente, contando histórias junto aos anciãos da cidade nos dias mensais de festa. As histórias são tiradas de mitos gregos e nórdicos, com um de cada para cada livro.
 
O processo de escrita de Morris envolvia todos ao seu redor, incluindo família, amigos e colegas, dividindo seus planos e esboços até que, como diz sua amiga e artista Georgiana Burne-Jones, ela se achava “mordendo os dedos e perfurando a si mesma com alfinetes a fim de manter-se desperta.”
A despeito da reclamação de Burne-Jones sobre o processo, a escrita do autor é emocionante. A poesia de Morris é bela em sua expressividade e imagética, e não é hermética a despeito do uso ocasional de termos arcaicos. Ele acreditava em uma poesia acessível e escrevia com clareza e simplicidade.
 
Ele se valia de imagens e ideias recolhidas de sua própria vida, das memórias de sua infância rural até a vista do Tâmisa perto de seu lar em Kelmscott Manor nas Cotswolds. Os biógrafos igualmente sugerem que os mitos incorporados ao poema podem também ter tido ressonâncias pessoais. Como argumenta a escritora Fiona MacCarthy, “Os contos, lidos de perto, são todos histórias de amor malsucedido”, ecoando sua relação dificultosa com a esposa, Jane.
 
Escape e compreensão
 
As preocupações de Morris parecem amiúde uma leitura muito presciente da cultura de hoje quando então as lemos. O narrador descreve a si mesmo como “o indolente cantor de um dia vazio”,1 como se o poema existisse apenas por diversão, e explica, de forma quase humilde:
 
Do Inferno ou Paraíso cantar me é vedado,
Dos teus medos o encargo não posso amainar,
Ou à célere morte fazer menoscabo
Ou de anos passados o prazer reavivar2
 
Contudo, de muitas formas o poema faz exatamente tais coisas, transportando o leitor de “seis condados suspensos em fumaça”3 no poluído ambiente do século XIX, para uma bela, limpa e antiga cidade. Morris sabia, mais do que muitos, talvez, o valor e o poder da leitura para retirar-nos do mundo atribulado em que vivemos, mudar nossas percepções e até instigar-nos a agir.

Isso fica evidente em seu romance medieval Notícias de Lugar Nenhum (1890),4 que combina socialismo utópico e ficção científica (leve). Mas em The Earthly Paradise Morris faz uso de uma abordagem menos instrutiva, alinhando o velho e o jovem, o pobre e o rico, e convocando-nos a compreender o mundo ao nosso redor.
 
A mensagem política de The Earthly Paradise foi frequentemente negligenciada, possivelmente porque a beleza da poesia acaba por disfarçar a sombria sexualidade dos mitos, a preocupação sobre como o meio-ambiente é tratado, e o ressonante clamor de Morris por igualdade e compreensão.

Os contos são frequentemente cruéis, mas a igualdade sexual, a forjadura da esperança pessoal e a possibilidade de um mundo melhor, e o aprendizado recebido do “amaro saber da terra”5 oferecem o irrevogável sentido de que o amor da humanidade e da própria terra podem, ao menos, reconciliar-nos com a realidade da vida.
 
Notas
 
1 “the idle singer of an empty day”
 
2 “Of Heaven or Hell I have no power to sing,
I cannot ease the burden of your fears,
Or make quick-coming death a little thing,
Or bring again the pleasure of past years”

3 “six counties overhung with smoke”
 
4 Publicado no Brasil pela Expressão Popular em 2019.
 
5 “earth’s bitter lore”
 
Tradução livre de Guilherme Mazzafera para “William Morris – how a great thinker and poet was overlooked for his wallpaper”, publicado aqui, em The Conversation em 1 out. 21.
 

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