Os poemas em envelope de Emily Dickinson



Recentemente em meio a uma polêmica tivemos acesso a um arquivo digital que reúne, pela primeira vez em um só lugar, todos os documentos da poeta Emily Dickinson. O projeto “Dickinson Eletronic Archive”, conduzido pela Universidade de Harvard, se arrasta tem seu tempo devido a um conflito pela posse da obra poeta estadunidense que remonta ainda ao final do século XIX. A Amherst College, outra instituição também depositária dos manuscritos de Dickinson, tem parte na consolidação do projeto. Mesmo assim, os representantes da Amherst reclamam que não foram consultados e o site traz muito material sem referência às suas contribuições.

O que essa confusão tem a ver com a postagem de hoje? Não muita coisa,  apenas em comum retalhos do acervo da poeta. Mas, findemos antes a história sobre o espólio: quando a escritora morreu, sua irmã, Lavinia, descobriu a existência de quase dois mil poemas inéditos. Lavinia, então, consultou a cunhada, Susan Dickinson para saber como publicar esse material. A demora com a resposta, fez ela procurar Mabel Loomis Todd, companheira de um professor na Amherst e amante do irmão de Emily Dickinson. Com a ajuda de Thomas Wentworth Higginson, os dois publicaram com uma extensa revisão os poemas; toda a pontuação, por exemplo, foi refeita em relação aos originais e foram acrescentados títulos aos textos. Saiu assim três volumes da obra de Dickinson; o último em 1896. E daí surge a disputa entre Todd e a família.

Todd disse que o irmão de Emily havia prometido a ela um pedaço de terra e ela, por não receber o prometido, recusou-se dar-lhe os originais. Em 1956, a filha de Todd doou o espólio contendo cerca de 850 poemas e fragmentos mais 350 correspondências para a Amhrest College, instituição da qual o avô de Dickinson foi um dos fundadores e seu pai e irmão serviram como tesoureiros. Enquanto isso, os manuscritos que permaneceram com a família Dickinson – cerca de 700 poemas e 300 correspondências – acabaram sendo vendidos para Gilbert Montague, primo distante de Emily, que em 1950 havia doado tudo para Harvard. A disputa familiar então se transformou em disputa entre as duas universidades.

Brigas à parte, esta semana, além do portal Emily Dickinson, recebemos pelas livrarias uma caprichada edição de textos até então desconhecidos da poeta; desta vez, não foi feita qualquer interferência nos arquivos. Os tempos e a consciência pedem que sejam outros. A edição em questão é fac-similar com transcrição da caligrafia, digamos, um tanto complexa de Dickinson.

Trata-se de um conjunto de poemas escritos em envelopes, ressignificando não apenas o texto, mas o destino dado aos papéis; condições, aliás, nem um tanto novas para a poeta. Há um tempo Edward Gorey, por exemplo, deu com a importância que tiveram os envelopes para James Joyce, um colecionador de fatos científicos, curiosidades históricas e trocadilhos linguísticos e que mantinha todos esses recortes separados em envelopes A4 laranja.

Emily Dickinson usou os envelopes como um espaço textual para esboçar ideias, escrever e rabiscar versos. Cinquenta e dois foram encontrados entre os seus papéis e reunidos nesta edição ora publicada, dando forma a antologia The Gorgeous Nothings: Emily Dickinson’s Envelope Poems. A organização ficou à cabo da artista plástica e também poeta Jen Bervin e da historiadora Marta Werner.

No processo nada se perdeu: enquanto Werner cuidou da catalogação e datação dos textos, Bervin os transcreveu e os reproduziu nas transcrições o formato original dos envelopes, conduzindo o leitor a pelo menos dois lugares de experiência com o texto poético: a aproximação do traço, da vulnerabilidade da caligrafia de Dickinson e a experiência de contato privado com a vivência do poema, ora em sua gênese, ora já semiconstruído.  

Para os organizadores o que este apanhado de escritos significa é a documentação de uma emoção espontânea num tempo em que isso ainda é usual; num tempo ainda não sufocado pela plasticidade, a letra cuidadosamente desenhada por máquinas de escrever ou pelos computadores. É deparar-se com a mão humana em ação e as particularidades da força criativa.

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