Lolita é Nabokov

Por Monika Zgustova

Vladimir Nabokov e o tio Ruka, 1908.
Arquivo: The Vladimir Nabokov Literary Foundation


 
Os pais de Vladimir Nabokov costumavam passar o verão em Vyra, numa mansão com um grande jardim nos arredores de São Petersburgo. Depois de um daqueles almoços tardios, longos e fartos, tão característicos do gosto dos russos abastados antes da revolução, os anfitriões e convidados saíram para tomar café no terraço. Vladimir, que tinha oito anos naquela primavera de 1907, ficou retido por seu tio Vasili Rukavishnikov, um diplomata, ou Ruka, como o chamavam seus colegas de trabalho nas embaixadas. Ruka, que em russo significa “mão”, foi o apelido que também se enraizou na família. Quando os comensais saíram para a esplanada, o tio sugeriu ao rapaz que ficassem os dois sozinhos na sala de jantar inundada pelo sol.
 
Sentou a criança em seu colo e acariciou-a gentilmente, sussurrando palavras brincalhonas e travessas em seu ouvido; o pequeno Vladimir sentiu-se envergonhado. Ficou aliviado quando seu pai entrou na sala de jantar regressando do terraço. Vladimir percebeu que o pai estava chateado com o cunhado quando este exigiu severamente que ele saísse com os outros para o terraço. E mandou o menino para seu quarto.
 
O tio Ruka era um aristocrata e homossexual, um diplomata rico e refinado ao estilo do Barão de Charlus, um dos protagonistas de À procura do tempo perdido, de Marcel Proust. Era um homem esmeradamente elegante, que usava sempre um cravo violeta na lapela do casaco cinza perolado e que gostava de recitar em voz alta poemas que ele próprio escrevera em francês. Naquela mesma noite o tio apareceu no quarto do pequeno Vladimir. Pediu ao menino que lhe mostrasse sua coleção de borboletas e enquanto olhavam juntos, o tio fazia cócegas em seu rosto com seu bigode sedoso e continuava com suas carícias e toques cada vez mais ousados. Esses encontros eram agradáveis ​​e desagradáveis, tentadores e repugnantes ao mesmo tempo. E duraram cerca de quatro anos.
 
Desde que Lolita foi publicado, leitores de todo o mundo se perguntam quem é a misteriosa menina, em quem ou em que experiência Nabokov se baseou para criar seu personagem. Ao pesquisar materiais para o meu romance Un revólver para salir de noche (trad. livre Uma arma para sair à noite), encontrei as evidências, que parece que ninguém havia notado antes, de que Nabokov, em seu romance, descreveu os abusos de que ele próprio foi vítima quando criança. No subcapítulo 3 do terceiro capítulo de Fala, memória, Nabokov diz que “quando eu tinha oito ou nove anos” seu tio Ruka “depois de comer me sentava em seu colo” e sussurrava para ele palavras estranhas, enquanto “eu ficava envergonhado com as travessuras do meu tio”; como dissemos, um peso era tirado de seus ombros quando o pai de Nabokov chamava tio Ruka para sair com os outros: “Basil, on vous attends”. Como Nabokov indica indiretamente, mas com bastante clareza, nas suas memórias, estes jogos abusivos duraram três ou quatro anos.
 
Quando Vladimir tinha 11 ou 12 anos, segundo confessa, um dia foi buscar o tio na estação ferroviária. O tio veio do exterior para passar o verão em sua propriedade em Vyra, adjacente à residência de verão dos pais de Nabokov. Ao vê-lo, Ruka disse ao menino: “Como você ficou amarelo e feio (vous êtes devenu jaune et laid), pobrezinho!” No seu aniversário de 15 anos, o imensamente rico tio Ruka anunciou-lhe em francês que o tornara seu herdeiro. Depois se despediu: “E agora você pode ir embora, l’audience est finie. Je n’ai plus rien à vous dire.” Algo semelhante acontece em Lolita: no final do romance, após uma busca desesperada, Humbert Humbert encontra uma Lolita adulta, aos 17 anos, casada e grávida. Seu sedutor a encontra pálida, sardenta e emagrecida e lhe dá uma grande soma em dinheiro para usufruir seu casamento. No entanto, Lolita não pode desfrutar da sua repentina riqueza porque morre no parto, tal como Nabokov não pôde desfrutar da sua herança porque aos 18 anos a Revolução Russa causou a desvalorização total do rublo.
 
Depois de mergulhar na obra de Nabokov, e não apenas em suas memórias, vi claramente que quando criança Vladimir sofreu atenção abusiva de Vasili Rukavishnikov, ou Ruka, irmão de sua mãe, e que isso foi um dos fatores que determinou a criação do romance Lolita. Nabokov estava obcecado com a ideia de abuso de crianças. Ele primeiro escreveu sobre isso em O mago, um romance que mais tarde descreveu como “a primeira palpitação de Lolita”, mas não ficou totalmente satisfeito com isso. E mesmo depois de Lolita voltou ao tema dos excessos e abusos em Fogo pálido, falando então claramente de relações homossexuais. Nos três casos, Nabokov expressou a sua contrariedade e rejeição aos excessos cometidos contra as crianças.
 
É possível que poucos, talvez apenas Véra, a esposa do escritor, conhecessem esse seu segredo. Véra sabia que o marido gostava tanto de mulheres quanto de borboletas. Mas, de acordo com Katherine Reese Peebles, com quem Nabokov teve um relacionamento amoroso quando era professor na Universidade Cornell, nos Estados Unidos, “ele gostava de mulheres e jovens, mas nunca de meninas”. Além disso, Véra sabia que para a personagem Lolita Vladimir recorreu ao sequestro da menina Sally Horner, caso que abalou o país no final da década de 1940. Dia após dia, Nabokov procurava nos jornais estadunidenses novas revelações sobre as terríveis aventuras de Sally nas mãos de seu sequestrador, para usar esse material em seu romance. Sobre o sequestro de Sally Horner, a escritora Sarah Weinman publicou o livro The Real Lolita.
 
As atenções abusivas do tio Ruka também fizeram com que Nabokov encarasse os homossexuais com ceticismo. Ele se distanciou de seu irmão Sergei por causa de sua homossexualidade. É um tanto surpreendente porque Nabokov era um homem muito aberto e nada moralista. Porém, ao saber que Sergei havia se comportado como um herói, mudou de atitude. Durante a Segunda Guerra Mundial, Sergei nunca escondeu o seu desprezo pela Alemanha de Hitler e pelo regime nazi, que criticava abertamente; alguém o delatou e Sergei acabou num campo de concentração nazista, onde morreu. Em retrospecto, Nabokov tinha vergonha de sua postura fria em relação ao irmão. E só então mudou sua atitude em relação à homossexualidade em geral.
 
Ao longo das décadas, foram escutadas críticas a Lolita a partir das sensibilidades feministas. Muitos delas parecem não perceber todas as nuances do romance. Como a grande obra de arte que é, Lolita é escrita a partir de absoluta liberdade e procura refletir a complexidade de qualquer comportamento humano. Nabokov nunca teve a intenção de escrever um panfleto, embora tenha deixado claro nas entrelinhas para quem sabe ler que rejeitava o indigno sedutor de menores e que Lolita era uma vítima. Da mesma forma que Nabokov foi vítima porque Lolita também é ele.


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* Este texto é a tradução livre de “Lolita és Nabokov”, publicado aqui, em El País.

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