O Incêndio de This Is Us e Manchester à Beira-Mar na poesia brasileira


Por Wagner Silva Gomes

Emilio Tadini


"Não, não perdi a mania, ainda durmo fumando
Ainda queimo o colchão
Claro que lembro do dia, em que quase morri
E ninguém me acordava"

Se esquecer de trocar as pilhas do aquecedor e ele não desligar sozinho causa o incêndio e a morte do pai dos três irmãos da família núcleo na série This Is Us, e esquecer de desligar a lareira em uma breve saída pra tomar "uma" causa a morte da família no filme Manchester à Beira-Mar; em outra linha, a da música popular brasileira, "Perfume Siamês", de Altay Veloso, cantada por Emílio Santiago, trata as situações de descuido. Como algo  habitual, e por isso malandramente treinado para a possibilidade trágica (- cuidado, um dia você queima a cama!, imagino a esposa dizendo), tudo termina em um gracejo sobre o momento de amor do casal, cujo marido tinha a teimosa atitude falha, e a esposa por amar o chamava a atenção mas já sabendo que aquilo nunca ia mudar, nem depois que se separaram, diz o eu-lírico, que traz a memória afetiva não à toa. O mesmo à ex-esposa depois de muito tempo tem a cara de pau de relembrar o acontecido como algo tão belo, construído na relação dos dois, que é capaz de fazer a mulher voltar. Com isso ele se apoia em uma vida de falsa modéstia.

Essa grandiosa afetividade e valorização das coisas simples, em termos de matéria e momentos, é o alto nível de humanidade ao jeito do povo brasileiro, é o que o  povão e toda a classe trabalhadora que a tem como parâmetro do seu estilo de vida têm a ensinar.

Chico Buarque tem muito disso, muitos acham que "Com Açúcar Com Afeto", "Cotidiano",  são de crítica a uma vida que a classe média não quer levar mas não é bem assim. Claro que por engajamento de esquerda e consciência ele critica o trabalhador ter que comemorar o fim de cada dia de trabalho como se fosse uma batalha e critica quando a vida não oferece muita variedade cotidiana por precariedade, mas é só prestar atenção no vínculo de resistência e superação que é construído com o outro e com o que se preza materialmente mesmo com coisas e situações simples (repara a ternura que a eu-lírico tem em viver o que ela canta, e a graça que ela tira de tudo). Ouça "Fica", "Amor Barato", "Logo Eu", músicas em que os elementos de vivência tiram afeto do desentendimento, amor da ira, resistência da precariedade, tudo em um baú onde se guardam os verdadeiros paradoxos da vida familiar brasileira. Nessas músicas, esses elementos são mais destacados que a crítica ao que passa a classe trabalhadora mais baixa em termos de precariedade

Em assunto de saudade, não da memória do que morreu em um incêndio por um momento de descuido, mas do mesmo que habituado a correr o risco sempre se salva, até quando quase morre, deixando a brasa alimentar outro  início de chama, também a do amor, a saudade do cuidado que a conjugue tinha com ele e da aventura graciosa que era a situação, "Perfume Siamês" é uma pérola negra do lar, assim como "Poeira da Idade", cantada por João Nogueira, mostra com a maior grandeza afetiva o seu museu de coisas simples, que pegam fogo humanista. Essas músicas de velho têm muito a ensinar. 

Segue "Perfume Siamês":


Mas que prazer te rever, que bom te encontrar
Ah! Nesses anos a vida te fez remoçar
Não, não precisa fingir, nunca foi o teu forte fingir pra agradar
Pra mim o tempo passou, mas vamos sentar e sair da calçada
Sem colarinho e com fé, que é pra gente esquentar
Uma porção de filé e um conhaque Dubar
Não, nunca vou me mudar, é a mesma casinha onde fomos morar
Vê se vai me visitar, as coisas continuam no mesmo lugar

O salgueiro que você plantou
De chorar quase morreu, resistiu e cresceu
Mas o cão adoeceu, sentiu sua falta demais
E a roseira lá de trás, deu rosa e concebeu, sem espinhos uma flor
Que tem seu cheiro e o meu

Garçom me traga mais dois que é pra comemorar
Traz um traçado depois que é pro santo agradar
Não, não perdi a mania, ainda durmo fumando
Ainda queimo o colchão
Claro que lembro do dia, em que quase morri
E ninguém me acordava
Nossos retratos de amor, eu não pude rasgar
Quando você se casou, pensei em me matar
Tua loucura foi tanta, casar por vingança só mesmo você
Mas não perdi a esperança
As coisas continuam no mesmo lugar

O salgueiro que você plantou
De chorar quase morreu, resistiu e cresceu
Mas o cão adoeceu, sentiu sua falta demais
E a roseira lá de trás, deu rosa e concebeu, sem espinhos uma flor
Que tem seu cheiro e o meu

Pede a conta, meu amor
E volta pro que é teu.


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