J.P. Cuenca e Vladimir Safatle no inferno: o querer da literatura e da filosofia hoje?

Por João Arthur Macieira


João Paulo Cuenca em frame do filme A morte de J. P. Cuenca. Reprodução.



Escrever sobre escrever. Escrever sobre escritores, diretores de cinema ou teatro, sobre estudantes de pós-graduação, professores de pós-graduação. Aspirantes a escritores, amantes de escritores. Autobiografias de escritores. Quem lê pode ter a impressão de que há um universo muito restrito de lugares onde a narração pode ir. A experiência mediada pela realidade dos literatos quer se sobrepor à realidade, como se não fosse dela que a própria escrita emergisse. Certamente, não é para isso que queremos a literatura.

Tende-se a crer que a literatura oferece esse tal acesso formidável à realidade, às suas dimensões mais profundas, mais verdadeiras do que é para o não-leitor. Ler educa os corpos e ensina-os a obediência à mente. Essa tese ganha força justamente com o realismo moderno do século XIX. Um exemplo maior seria o de Balzac e a descoberta das estruturas sociais através do texto literário. Ironicamente, essa crença no potencial civilizatório da leitura e da literatura encontra justamente seu contraponto… na literatura do século XIX.

Enquanto instrumento pedagógico, o texto literário está sob o julgo da moralidade. Os processos movidos contra Gustave Flaubert por conta de Madame Bovary  —  e os mais óbvios, contra Baudelaire e suas Flores do mal  —  são também testemunho de uma crença infundada a respeito do potencial da literatura.

Um demônio contemporâneo (o último que me lembro a sofrer um processo pesado por conta de algo escrito) é o escritor carioca J.P. Cuenca. Não apenas na sua atividade enquanto romancista (pois nada que ele tenha tweetado não estava potencialmente presente em seu último livro), mas também na sua atuação nas redes sociais, jornais e eventos literários.

Em Descobri que estava morto, Cuenca ironiza a tese de Antonio Candido da literatura como instrumento de civilização. Esse balde de água fria em cima do maior crítico literário brasileiro  —  que também foi de esquerda  —  mostra quão ingrata é a tarefa de quem deseja ir até o fim com a escrita. No romance, o protagonista J.P. Cuenca é um escritor metido no círculo jornalístico-cultural carioca, com o qual vivencia festinhas, bebedeiras e conversas hipócritas. Com seu editor, o momento mais marcante é quando tentam comer duas suecas na Lapa, e falham.

A menoridade desse protagonista  —  quer dizer, sua condição de personagem menor, tal qual pensou Deleuze  — , que vê a cidade se transformar num grande canteiro de obras, a fim de enquadrar-se em padrões muito pouco razoáveis, a fim de servir de palco para grandes eventos que terão duração de no máximo dez anos, é também a menoridade da própria literatura. Afinal, o que pode ela diante das máquinas de moer prédios, do grande capital caindo como avalanche sobre as cabeças de milhares de cariocas pobres, diante do próprio absurdo que é a desigualdade no Rio de Janeiro, representada nos personagens dostoiévskianos da Lapa e os hipócritas do Leblon? Uma literatura menor para uma realidade menor.

A literatura pode, enquanto ator moralizador e civilizatório, tão pouco quanto o Cuenca-protagonista diante dos policiais que o massacram ao final do texto (peço perdão pelo spoiler).

Mas nossas ações no real, nossa atividade coletiva e concreta, quando organizada, nessas sim podemos ter esperança.

Conheci a última aventura de J.P. Cuenca lendo seu artigo na revista piauí, no qual conta como um tweet o levou a uma presepada de processos movidos por pastores da Igreja Universal. O absoluto ridículo que movimenta aqueles processos (que é também dos sujeitos adultos, supostamente em controle de todas as suas faculdades mentais, que toparam se envolver nessa caça-ao-escritor) cria uma impressão de continuidade entre o inferno que finaliza o livro de Cuenca e a realidade vivida por ele pouco tempo demais. Contudo, como bem escreve o autor, há instrumentos de luta: dispositivos legais, jornalistas que denunciam o abuso, amigos que ficam ao lado… e há, sempre, por mais improvável, esperança.

Aproveito para comentar sobre o início da oficina de escrita experimental de J.P. Cuenca. Felizmente não está preso ou morto, pelo contrário, a oficina vai de encontro justamente com o lançamento de mais um livro de crônicas. Cuenca mostra-se digno de respeito não apenas por causa da sua literatura, mas pela coragem que ele demonstra ao assumir incessantemente o papel de escritor no verdadeiro inferno que é o Brasil de 2021.

Outro que há anos vem remando contra a maré  —  e nesse remar, vai observando mais atentamente os sinais do que nossas mentes mais sóbrias e moderadas é Vladimir Safatle. O professor da USP assume hoje, a meu ver, um lugar semelhante na filosofia brasileira. Não apenas porque não é de agora que se permite duvidar dos pressupostos básicos da chamada filosofia nacional, que parece incapaz de desgarrar-se de uma expectativa de progresso, por mais que esse progresso se faça por cima de uma infinidade de corpos.

Nem a literatura, nem a filosofia desejam essencialmente fazer parte de processo civilizatório algum, não querem necessariamente docilizar os corpos e ensiná-los a obedecer as almas, não pretendem promover o progresso sob o julgo da figura do Estado.

Tampouco são terreno divino; pelo contrário, elas são melhor escritas por demônios. Para Goethe, ele aparece como Hegel; para Thomas Mann, como Theodor Adorno. Se esse movimento diabólico que é escrever e pensar radicalmente manifesta o desejo de alguma coisa, é o de dar corpo ao impossível. Para isso queremos a literatura e a filosofia nesse momento.

Hoje esperamos a emergência desses corpos; corpos políticos, mas também corpos literários, capazes de romper com o absoluto ridículo-repetitivo que vivemos. J.P. Cuenca é, enquanto escritor, produtor das duas coisas. Vladimir Safatle igualmente. Daí a consciência de ambos do perigo porvir, inclusive para si mesmos.
 
 

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