Sobre assistir BBB e ser cult

Por Rafael Kafka

A. R. Penk


 
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Volto a escrever para o Letras um ano depois sobre um tema muito curioso. Uma confissão na verdade: a pandemia me fez assistir ao Big Brother Brasil. Escrevi em meu blog pessoal sobre as questões emocionais e mentais que me levaram a parar de escrever publicamente e mesmo em meu diário pessoal sobre diversos temas, para não dizer todos. A escrita virou algo pesado para mim, uma forma de me exibir a qual me soava perigosa ao extremo.
 
Não quero ser vítima isolada, mas a pandemia me fez mal. Por causa dela, meu psicológico que já andava claudicante piorou demais. No meio da pandemia, eu simplesmente não consegui mais ler e fazer dos livros um horizonte de diferença num mar de mesmidade. O absurdo palpável é a mesmidade.
 
Deitado em minha cama, eu olhava para meu notebook e seus streamings e para meus livros e ebooks do Kindle e nada me chamava a atenção. Fiquei curioso de ver Baudelaire compondo poemas sobre spleen e melancolia em tempos de Covid 19, pois eu não fui capaz de fazer isso. Por sorte, venci o marasmo e voltei a ler, mas preciso dizer que os tempos pandêmicos me permitiram melhorar como pessoa, como tanto falavam alguns coachs transcendentais no começo de tudo lá em 2020.
 
É que eu aprendi, de maneira ainda tosca, a me possibilitar não fazer nada em alguns momentos. Motivado pela intensidade de uma mente inquieta e pelo gosto de estar sempre ocupado e não caindo em momentos de ócio pouco produtivo, a pandemia foi um momento de minha vida em que me vi obrigado a simplesmente relaxar e gozar do tempo parado. Não podia fazer muita coisa em relação aos números de mortes e contaminados, a não ser tentar ficar bem para quando as coisas voltarem mais próximo de alguma normalidade.
 
Nesse sentido, após um começo em que tentava ler, ouvir podcasts, ver filmes e acompanhar as notícias, e por conta de uma questão pessoal abordada em outro espaço, eu tive uma pane e entrei nas crises melancólicas supracitadas. Não quero dizer que eu deveria ter ignorado tudo o que se passava no mundo, mas poderia — e hoje entendo que deveria — ter filtrado mais as informações que chegavam a mim, ter me abraçado com a ignorância.
 
Quando o BBB 20, uma das grandes edições pelo que posso acompanhar em comentários, estava sendo exibido eu já não tinha o preconceito intelectual existente em mim anos antes. Eu era o típico amante de coisas cultas que não entendia o que levava alguém a assistir BBB, exceto a futilidade e tempo em excesso. Com o passar dos anos, eu percebi que havia perdido essa visão elitista, mas não tinha paciência para o programa.
 
Não assisti ao BBB 20 mesmo com todos os comentários, pois ainda resistia a ideia de perder tempo acompanhando o programa. Todas as vezes na vida em que parei para assistir uma ou outra cena eu não via nada demais e ficava com tédio. Era talvez um lastro ainda do olhar erudito que existia em mim e eu não queria eliminar, muito contaminado pelo espírito militante de certas torcidas do BBB as quais fazem o programa um verdadeiro laboratório de suas teorias de crítica cultural que causariam inveja em Homi Bhabha.
 
Passei a ver Big Brother sem essa paixão política de quem me parece quer ser cult sendo fútil. Existem muitas pessoas que abominam o significante “erudito”, mas não largam da conduta até quando falam de um programa como o BBB. Por mais que ache forçado esse tipo de conduta, ainda mais quando consideram o reality ter uma vencedora uma mulher preta ou nordestina uma vitrine política relevante para entender nosso país, eu o entendo. Porque isso se liga diretamente ao motivo de assistirmos a esse tipo de programa.
 
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Humanos amam narrativas. Por isso a arte faz sucesso. Somos fascinados pelo ser-aí, nos termos de Heidegger, pelas diversas manifestações de ser. Há uma cena bem demoníaca do mangá Berserk em que uma deusa demônio se deleita com uma cena de violência sexual. Ela diz que a mistura de sentimentos positivos e negativos ali era algo divino e humano ao mesmo tempo. Não somos seres divinos, mas somos curiosos com o que o ser humano é a cada momento. Gostaríamos de ter um olhar onisciente para vermos tudo o que nos diz respeito no rol de narrativas que é o programa.
 
Tenho uma amiga que se apaixonou por Juliette Freire, a vencedora da primeira edição que acompanhei, em 2021. Ela usava seu serviço de pay per view para seguir os passos da paraibana com quem se identificou. Isso prova que por mais que o programa não seja uma obra de arte no sentido mais estrito ele tem muito que nos faz entender a relação entre sujeito leitor e obra lida. O BBB mexe com horizontes políticos e estéticos de cada indivíduo e nesse sentido ele realmente tem muito de reflexos dos debates sociais que estão sendo feitos atualmente.
 
Exemplo disso é a presença de uma jogadora transexual, Linn da Quebrada, a qual precisou várias vezes corrigir os demais participantes que a chamavam usando o pronome masculino, uma forma de desrespeito com as pessoas desse segmento social. Não tenho como avaliar a participação de uma outra moça trans há alguns anos, mas o fato de ela ter sido a primeira eliminada me faz pensar que esse tipo de debate não teria sido feito na ocasião.
 
O BBB atrai porque as narrativas ali existentes são com seres de carne e osso, seres como nós. Os puristas lembram que é um jogo e nós falamos o óbvio: sabemos disso, mas ninguém consegue jogar o tempo todo. Uma hora, em especial nas festas e momentos de maior tensão, a subjetividade vem à tona. Essa curiosidade pode se ligar a muitos comportamentos baixos e vilis humanos, mas também pode suscitar emoções muito nobres de engajamento, similar ao que ocorre quando lemos uma obra literária.
 
Jesús Martín-Barbero diz que mais do que julgarmos o interesse das camadas mais populares em certas formas de arte devemos procurar entender de que maneira elas se enxergam nessa arte. Dessa forma, entendi, mesmo não tendo amores por elas começamos a entender seus valores. Fazer isso me permitiu gostar de tecnomelody, funk e BBB e hoje me sinto alguém bem melhor.
 
Sim, eu me acho melhor por curtir BBB. Não escrevo esse texto querendo convencer ninguém a ver o programa. No máximo como arremedo de crítico, espero contribuir com a desconstrução de que quem assiste BBB é pior do que quem não assiste. Se BBB é perda de tempo é justamente esse o ponto: todos nós temos nossas próprias maneiras de perder nossos tempos. Umas mais requintadas e outras nem tanto. A pandemia me fez amar BBB e dormir e por isso digo que sou alguém melhor. Hoje sei relaxar e não ficar preso à pose de cult o tempo todo.
 
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Acima falei com certa ironia de quem quer ser crítica cultural apenas assistindo BBB. Por mais que diga isso, eu concordo que o programa sirva a muitos debates sociais importantes. Deixar de me prender à imagem do cult é justamente entender algo que falo demais a meus alunos: mesmo uma piada aparentemente inofensiva é objeto de reflexão crítica quando não se tem preguiça de pensar.
 
A minha amiga apaixonada por Juliette diz que me acha cult em tom de brincadeira e certo incômodo. Não concordo com ela, pois quem se prende à pose de cult é um sujeito muito limitado em suas vivências e reflexões. Ser cult é mais uma aparência, mais o desejo de ser percebido de uma determinada maneira.
 
Há cults inclusive que assistem ao BBB. Parecem sempre à procura de uma cena mais densa para poderem escrever comentários profundos nas redes sociais sobre suas visões sobre o jogo. Geralmente são os que menos fazem piadas com o programa e têm uma necessidade de seriedade frente ao programa bastante curiosa.
 
Meus comentários são mais piadas mesmo. Vez ou outra eu compartilho uma análise mais séria. Mas o BBB para mim é a chance de eu ser fútil, até mais do que o futebol atualmente. O BBB me ajudou a não perder a sanidade na pandemia, mas respeito demais quem não quer assistir. Assim como respeito quem não quer ver filme do Godard.
 
Só me sinto no direito de achar idiota quem se acha mais cult e sapiente por assistir um e não assistir o outro.
 
 

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