Estes cães de Saramago: notas




1. Uivemos, disse o cão. Com essa citação José Saramago abre seu romance Ensaio sobre a lucidez. Quando estive lendo o romance A caverna, do mesmo escritor, marquei a presença constante que o cão faz nos textos do escritor português. Cavouquei a internet a título de encontrar alguma coisa sobre e dei de cara com um artigo; dado os dias que vi não me recordo agora o nome do texto, tampouco de seu autor e também já não consegui encontrá-lo mais.

2. Em entrevistas várias o escritor tem falado da simpatia que nutre pelos bichos. Além, é claro, de ter registros deles por toda parte de sua literatura. E a simpatia é tamanha que não se reduz aos livros, o próprio Saramago é carne e unha com alguns deles em sua casa em Lanzarote e, não só isso, já mereceu até postagem sobre eles em seu blogue, O caderno de Saramago, cujo texto copio abaixo.

3. Pois bem, mas tomemos notas destes cães, digamos assim, literários, do escritor. O primeiro que me recordo esteve a acompanhar as personagens na longa travessia da Península em A jangada de pedra. Aqui, além do cão personagem principal do romance, há os cães de Cerbère, eles que (como aquele da epígrafe de Ensaio sobre a lucidez) não tinham voz e a partir do momento que João Carda risca o chão e a Península começa a se separar da Europa, começam a uma convulsão de latidos.

4. Mas, antes eles estão em História do cerco de Lisboa e, antes ainda, em Levantado do chão. É enigmático o desfecho deste último romance: "Vão todos, os vivos e os mortos. E à sua frente, dando saltos e as corridas da sua condição, vai o cão Constante, podia lá faltar, neste dia levantado e principal." Assim, como é no primeiro romance, onde o cão aparece também no final da diegese para acompanhar os dois casais, Mogueime e Ouroana e Raimundo Silva e Maria Sara. "E Mogueime, e Ouroana, que foi que lhes aconteceu, Na minha ideia, Ouroana vai voltar para a Galiza, e Mogueime irá com ela, antes de partirem acharão em Lisboa um cão escondido, que os acompanhará na viagem".

5. E há aquele mais famoso, transposto até para as telas da sétima arte, transposição que mereceu a devida alfinetada do escritor ao diretor Fernando Meirelles, por este ter colocado um cão inversamente proporcional ao tamanho imaginado daquele nas páginas do Ensaio sobre a cegueira; falo, evidentemente, do Cão das Lágrimas, reaparecido em Ensaio sobre a lucidez. Essa figura é tão importante para Saramago que disse, certa vez, querer ser reconhecido como o escritor que criou o Cão das Lágrimas.

6. Em seguida, cito Telêmacus, do romance O homem duplicado e, por fim, este Achado, do romance A caverna. Certamente que há outros, mas dos romances que li são apenas estes.

7. E o que todas estas personagens caninas têm em comum, além de servir de companhia aos humanos em estágios difíceis ou nulos da sua humanidade? Eles se apresentam com uma capacidade para o reconforto, usando da imagem dos cães de Lázaro; são, em grande parte, a companhia fiel do outro, espécies de deus do consolo em sua animalidade. E, por vezes, parecem contrapor o caráter da própria humanidade que nos define em oposição a animalidade desses seres. Enquanto os humanos são apresentados numa verdadeira via crucis que por vezes os levam a fugir do senso de humanidade de que são possuidores, os cães de Saramago, à semelhança daquela cadela, outra famosa nas páginas de literatura, só que brasileira, a Baleia, de Vidas secas, de Graciliano Ramos, são eles, poços ricos do senso de humanidade e espécies de peças recondutoras, em sua animalidade, ao senso de humanidade que perdemos.

8. Outras vezes, são eles figuras simbólicas associadas às representações míticas, ou um modo de justaposição entre a narrativa, eminentemente contemporânea e a tradição do mito. Como é caso em A jangada de pedra ou em História do cerco de Lisboa ou ainda em Levantado do chão. Nesses romances eles assumem a posição simbólica de renovadores.

*

Cão de água

Quando Camões apareceu por aqui, vai fazer catorze anos, com a sua pelagem negra e a exclusiva gravata branca que o tem distinguido de qualquer outro exemplar da espécie canina, todos os humanos da casa se pronunciaram sobre a suposta raça do recém-chegado: um caniche. Fui o único a dizer que caniche não seria, mas cão de água português. Não sendo eu especialmente entendido em cães, não seria nada surpreendente que estivesse equivocado, mas enquanto os demais teimavam em declará-lo caniche, eu mantinha-me firme na minha convicção. Com a passagem do tempo, a questão perdeu interesse: caniche ou cão de água, o companheiro de Pepe e Greta (que já se foram ao paraíso dos cães) era simplesmente o Camões. Os cães vivem pouco para o amor que lhes ganhamos e Camões, final depositário do amor que dedicávamos aos três, já leva catorze anos vividos, como ficou dito acima, e os achaques próprios da idade começam a ameaçá-lo. Nada de grave por enquanto, mas ontem apanhámos um susto: Camões tinha febre, estava murcho, metia-se pelos cantos, de vez em quanto soltava um ganido agudo e, coisa estranha, ele, que tão falto de forças parecia, desceu ao jardim e pôs-se a escavar a terra, fazendo uma cova que a imaginação de Pilar logo percebeu como a mais funesta das previsões. Felizmente, o mau tempo passou, pelo menos por agora. A veterinária não lhe encontrou nada de sério, e Camões, como para nos tranquilizar, recuperou a agilidade, o apetite e a tranquilidade de humor que o caracteriza, e anda por aí feito uma flor com a sua amiga Boli, que passa uns tempos em casa. Por coincidência, foi hoje notícia que o cão prometido por Obama às filhas será precisamente um cão de água português. Trata-se, sem dúvida, de um importante trunfo diplomático de que Portugal deverá tirar o máximo partido para bem das relações bilaterais com os Estados Unidos, subitamente facilitadas graças à presença de um nosso representante directo, diria mesmo um embaixador, na Casa Branca. Novos tempos se avizinham. Tenho a certeza de que se Pilar e eu formos aos Estados Unidos, a polícia das fronteiras já não sequestrará os nossos computadores para lhes copiar os discos duros.

(De O caderno, blog de José Saramago)


Comentários

Eula C Pinheiro disse…
Pepe chegou primeiro; depois, pouco mais de um ano, foi a vez a jovem terrier que acabou por receber o nome de Greta... No dia que José Saramago recebeu o Prémio Camões, apareceu a latir intensamente frente a casa outro cão: dessa vez, pelas circunstâncias foi nomeado de Camões. Eula

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #596

Boletim Letras 360º #604

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #603

Bambino a Roma, de Chico Buarque

Seis poemas de Rabindranath Tagore