Relembrar Saramago

O caderno Domingo trouxe matéria sobre José Saramago. A matéria foi elaborada de conversas minhas com a editora do caderno e refaz o trajeto biográfico do escritor ressaltando algumas peculiaridades que não devem ser lidas como novidades. Abaixo reproduzo a matéria e faço algumas correções: onde se lê "Atualmente fazendo mestrado em Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)", leia-se "Atualmente fazendo mestrado em Letras na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)". (Pedro Fernandes)





A PERDA DE UM GRANDE ESCRITOR

Algumas pessoas parecem nascer para mudar a ordem das coisas e todas as probabilidades. Ao observar a origem humilde e difícil de José de Souza Saramago não se imaginaria que ele se tornaria um dos mais importantes escritores da língua portuguesa, com vasta obra publicada.

Saramago nasceu em 16 de novembro de 1922, em Azinhaga, a nordeste de Lisboa. Filho de agricultores sem terra que imigraram para Lisboa, precisou optar, muito cedo, entre trabalhar e estudar. Aos 12 anos teve de abandonar a escola para receber formação de serralheiro. Sem muitas perspectivas, enveredou por cursos técnicos que lhe permitissem empregos e a, muito custo, terminou o curso técnico na Escola Industrial de Afonso Domingues, atuando depois como mecânico, desenhista industrial e gerente de produção em uma editora.

Daí para frente, o que poderia ser uma história comum, de um homem trabalhador, ganhou outras pinceladas.

Quem discorre sobre essa trajetória de Saramago na literatura portuguesa e mundial é o pesquisador Pedro Fernandes, que há mais de quatro anos estuda sobre a vida e a obra de José Saramago.

Atualmente fazendo mestrado em Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Pedro escreve uma dissertação de mestrado sobre os romances Memorial do convento e Ensaio sobre a cegueira e explica a dificuldade de resumir informações sobre tão vasta obra:

"O que tenho a falar sobre Saramago daria uma longa entrevista ou um longo texto; até porque, além de uma monografia de graduação que escrevi sobre ele, trabalho agora numa da dissertação de mestrado e em dois projetos inéditos no Brasil sobre o escritor".

Mas é possível apreender um pouco do que foi a vida do escritor ao observar suas obras. Pedro explica que foi ainda como mecânico que Saramago mostrou sua verve literária ao lançar em 1945 a sua primeira obra, Terra do Pecado. "Esse primeiro livro passou totalmente despercebido aos olhos da crítica literária da época. Saramago não estava vinculado a nenhum nome importante, a nenhum grupo literário. Era simplesmente um mecânico que trabalhava para as oficinas dos Hospitais Civis de Lisboa. Não se sabe se a fria recepção à obra lhe afetou ou não, mas o fato é que depois de Terra do Pecado Saramago esteve quase vinte anos sem publicar algum texto significativo", explica Pedro.

Mas, a verdade é que ele não deixou de escrever. Fez poemas, se engajou politicamente ao ingressar ao Partido Comunista. Publicou crônicas resultadas da sua intensa vida nos jornais portugueses, (Diário de Lisboa, Diário de Notícias, no qual foi editor-chefe e diretor adjunto, A capital e o periódico Jornal do Fundão).

A partir de 1976 passou a viver de seus escritos, inicialmente como tradutor, depois como autor. Voltaria aos romances com o livro Manual de pintura e caligrafia, em 1977. No entanto, seu grande trabalho surgiria em 1980. Mas "é Levantado do chão, assumidamente, seu romance de estreia. Ele já havia feito oito publicações, mas é com este romance que se 'inaugura' o que ficou conhecido como estilo saramaguiano: um estilo típico de narrar, com um narrador à parte, que preserva o fôlego da oralidade no trajeto de escrita", ressalta Pedro Fernandes.

Personagens fortes

Uma característica marcante de José Saramago é certamente a riqueza dos seus personagens, ao longo de mais de duas dezenas de romances.

Para o pesquisador da obra do escritor, podem ser destacados personagens como o pintor H., do Manual de pintura e caligrafia, a família dos Mau-Tempo, do Levantado do chão, Baltazar e Blimunda, do Memorial do convento, a mulher do médico, do Ensaio sobre a cegueira, entre tantos outros nomes. Destes destacam-se ainda os personagens femininos usados por Saramago - Blimunda e a mulher do médico - por sua força e por, em contextos e obras distintas, terem capacidade de ver o que os outros não conseguem ver.

Polêmicas

Em meio as suas obras e posições contestadoras, está a afirmação do próprio escritor de seu ateísmo. Isso foi refletido em algumas de suas obras em que desafiou a igreja católica.

No final de 2009, seu último romance, Caim, traz um olhar irônico sobre o Velho Testamento e recebeu mais críticas da igreja.

O romance O evangelho segundo Jesus Cristo (1991) foi censurado pelo Governo português a não concorrer o Prêmio Literário Europeu; o parecer dava contas de que O Evangelho era imoral e feria os bons costumes cristãos do povo português.

"Isso tudo porque o livro apresenta um Jesus 'nascido como todos os filhos homens, sujo de sangue de sua mãe'. Lógico que o embate que o Estado vem travar com o escritor não reside apenas no fato de um Jesus humano. Na verdade, Saramago é responsável por reintroduzir outras forças contrárias ao discurso comum. De maneira geral era um incansável lutador pelas causas humanas até o último instante de sua vida. O tempo inteiro foi um incontido com a realidade e sonhava com um mundo de justiça", analisa Pedro Fernandes.

A partida

José Saramago faleceu no dia 18 de junho deste ano em Lanzarote (Ilhas Canárias, Espanha).
"Sua perda configura-se numa das maiores para a humanidade desse inicio de século. Não há nenhum exagero nessa afirmativa. Quando uma voz que grita do ladro contrário dos ecos comuns, cala-se o mundo fica mais pobre. Deixou-nos, entretanto, um legado: o que para viver nesse mundo há que ser sempre um inconformado, porque a rotina cansa, completa Pedro Fernandes.


* Publicado no caderno Domingo, do jornal De Fato, em 11 de julho de 2010.


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