Flannery O’Connor



Flannery O’Connor foi “apenas uma contadora de histórias”, segundo suas próprias palavras. Mas, nem sempre devemos nos fiar nas declarações dos escritores; e é esse um caso. Ela não era apenas uma contadora de histórias. Em sua prosa, buscou resgatar aos olhos de seus leitores, o estranhamento com que a Graça, o Mal e o Pecado Original, atuam neste vale de lágrimas. 

Esse estranhamento ocorre em nossas vidas quando o grotesco, a violência ou nossa incapacidade de reconhecermos que há uma inexpugnável diferença entre o que crermos ser o certo, e o que é certo perante os olhos de Deus. E a literatura de O’Connor explorou isso com certa maestria, o suficiente, para situá-la entre o melhor do século XX.

O chamamento à lucidez por meio da expressão idiossincrática das hipocrisias, muitas vezes manifesto com a fúria a violência, é dado por meio de uma literatura capaz de nos revelar o grotesco que nos cerca, e assim, aceitarmos melhor nossa parcela nessa realidade criada para nós. Flannery O’Connor usa dos mecanismos já tão definidos culturalmente, como a religião, para fazer nossa impotência.

Nascida no sul dos Estados Unidos (cujo imaginário coletivo remonta racismo, intolerância, lugar onde a odiosa América branca e conservadora cria e recria seus pecados), filha de pais católicos, apaixonada por pássaros, especialmente o pavão (pássaro que é símbolo do Cristo na iconografia cristã) e “abençoada” com uma doença incurável e que viria a matá-la precocemente, O’Connor usa desses elementos e contextos que a cercam para criar uma obra que por muito tempo foi considerada “menor”.

A distinção da menoridade é cada dia mais borrada quando se descobre, com o passar dos anos, a maneira inusual com que engendrou uma visão penetrante da alma humana, que muitos de seus pares contemporâneos não atingiram, ainda que seja o seu tempo o da prolífica literatura sulista. Ela viveu o mesmo tempo de William Faulkner e Carson McCullers, para apontar dois exemplos. A dita obra menor fez escola; quanto dela existe em obras como a de Cormac McCarthy com seu uso do grotesco e da violência? Não menos relevante é a presença da compaixão e da Graça em ambos.

Mas muitos leitores podem cair em uma armadilha ao ler as obras da escritora georgiana, apegando-se apenas ao grotesco ou à violência que ela tão bem descreve, ou ainda, procurando denúncias sociais ou raciais em seus escritos. Não são essas as motivações da escritora, ela não rebaixa o ato de escrever, coisa tão comum e esperada dos escritores neste nosso século de poucas luzes e ainda mais nesse nosso tão inculto Brasil.

Flannery O’Connor também não se apegou à covardia existencialista ou ao niilismo vazio. Sua busca foi sempre resgatar a nossa condição maior de filhos de Deus, entregues aos mares do livre arbítrio. Necessário dizer que essa condição não é facilitadora, atenuante ou leve, mas muito ao contrário, dura, cheia de dor e sangue, mas capaz de reconhecer nas penas coloridas de um pavão, a promessa divina de redenção.

Comentários

Unknown disse…
Ao lado de Flannery O’Connor, François Mauriac, Paul Claudel e Walker Percy, o francês Georges Bernanos figura entre os grandes escritores cristãos do século XX, ao ponto de o grande teólogo alemão Hans Urs von Balthasar ter-lhe dedicado um livro inteiro. Sua obra tem sido publicada no Brasil pela É Realizações Editora, e agora sua passagem pelo país é narrada ao público local. O estudo de Sébastien Lapaque “Sob o Sol do Exílio: Georges Bernanos no Brasil (1938-1945)” acaba de ser publicado, trazendo à luz a visita de Bernanos a várias cidade do Rio de Janeiro e Minas Gerais, sua estadia no sítio Cruz das Almas, sua revolta contra a mediocridade dos intelectuais e a ascensão do totalitarismo, sua amizade com pensadores brasileiros e a visita que Stefan Zweig lhe fez à véspera de se suicidar.

Matérias na Folha de S. Paulo a propósito do lançamento do livro: http://goo.gl/O8iFve e http://goo.gl/ymS4lL
Para ler algumas páginas de “Sob o Sol do Exílio”: http://goo.gl/6hAEOM

Confira também:
Diálogos das Carmelitas: http://goo.gl/Yy3ir3
Joana, Relapsa e Santa: http://goo.gl/CAzTTk
Um Sonho Ruim: http://goo.gl/Kd091z
Diário de um Pároco de Aldeia: http://goo.gl/ISErLc
Sob o Sol de Satã: http://goo.gl/qo18Uu
Nova História de Mouchette: http://goo.gl/BjXsgm

ANDRÉ GOMES QUIRINO
mkt1@erealizacoes.com.br
(11) 5572-5363 (r. 230)

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Dez poemas e fragmentos de Safo

11 Livros que são quase pornografia

A criação do mundo segundo os maias

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Camões, uma nova visão sobre o amor

Aproximações ao Manual de Epiteto e suas Diatribes — nossa ação num mundo de instabilidade