Miacontear - Meia culpa, meia própria culpa

Por Pedro Fernandes

Ilustração de Alan Carline. Fonte: Blog coletivo De chaleira


Utilizando o tom confessional já impresso na máxima cristã (adaptada é verdade) que dá título ao conto, “Meia culpa, meia própria culpa” é o relato de Maria Metade - “meios caminhos, meios desejos, meia saudade”. A alcunha Metade traz impressa as trilhas de sujeito errante. Mesmo sendo Metade, Maria não se conforma com essa situação que a realidade lhe impõe. E cria a outra metade da existência pelas vias do sonho - “Eu tinha a raça errada, a idade errada, a vida errada. Mas ficava no outro lado do passeio, a assistir o riso dos alheios. Ali passavam moças belas, brancas, mulatas algumas. Era lá que eu sonhava. Não sonhava ser feliz, que isso era demasiado em mim. Sonhava para me sentir longínqua, distante até do meu cheiro.” (p.41).

Logo, o que essa personagem tem de diferente das personagens femininas que tivemos contato até agora em O fio das missangas é que esta não respeita a ordem imposta. Sonha e pelo que sonha é capaz de fundar outros espaços subjetivos que se erguem nas diferentes vias do sensível que ocupa. Movida que foi pelas duas ordens existenciais, Maria Metade não se conformará com o “semimacho”. Ao marido, Seis, possuidor que fora de seis amantes, todas atuais, Maria Metade que dele esteve grávida, mas abortou, nega-lhe a existência. Por esse motivo é presa. 

Mas aqui, a cadeia, antes de significar um espaço de redoma, de clausura, significa para ela (ou ela o ressignifica) uma ordem outra. É o espaço único em que não lhe é negada sua capacidade de sonhar. “Vantagem da prisão é que todo dia é domingo, toda a hora é de matiné das quatro. É só meu sonho dar um passo e eu já vou sentando minha privada tristeza no passeio público. Volto onde eu não amei, mas sonhei ser amada. É só um passo e eu atravesso o passeio público. E não mais precisarei invejar o sorvete, o riso, a risca no penteado.” (p.41).

Ainda é cedo, entretanto, para apontar na personagem uma total liberdade frente ao potentado masculino. O período que esteve submissa ao marido e o homicídio cometido e “semi-confessado”, na verdade, vem reiterar ainda um perfil que muito se assemelha ao das outras mulheres em O fio das missangas. É claro que Maria Metade é mais disposta às atitudes, mas ela se mostra submissa aos devaneios. A morte de seu marido, antes de significar uma libertação definitiva, significa o levante de outra prisão, afinal ela o mata para tê-lo guardado na lembrança só pra si. 

A aceitação pela metade do crime e sua formulação que não lhe tirou a vida porque vida não havia mais no corpo de Seis é na verdade um mascaramento de um desejo de posse: “E sente-se comigo, aqui ao meu lado, a assistirmos a esse filme que está correndo. Já vê, lá na tela, o meu homem, esse que chamam de Seis? Vê como ele, agora, no escurinho da sala está olhando para mim? Só para mim, só para mim, só.” (p.43).

Ligações a esta post
>>> Acompanhe aqui a leitura dos contos de O fio das missangas.


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #593

Boletim Letras 360º #592

“O cortiço” como expositor das mazelas e injustiças sociais

O visitante, de Osman Lins

Boletim Letras 360º #587

Boletim Letras 360º #586