Miacontear - O menino que escrevia versos

Por Pedro Fernandes



Este menino bem poderia ser o último exemplar daquelas criaturas que viviam de fazer arte e que em seguida foram sendo transmutadas para outro universo que não o dos humanos no conto "A infinita fiadeira". Acontece que ele parece ter sido salvo antes do tempo de receber tal condenação. Retomando o tema da 'função' ou 'utilidade' da arte na sociedade contemporânea, no caso aqui específico da poesia, Mia Couto engendra a história de um menino dado a fazer versos e que tem, por isso, a reprovação do pai e o cuidado exacerbado da mãe. Preocupados com o 'mal' do menino, os pais levam-no ao médico e requerem urgência no tratamento do caso.

Alguns elementos nesse conto são indispensáveis de uma observação. Um deles é a presença do pai como o representante de um ordem de dominação, seja pela categoria de gênero que ocupa, seja pela profissão que exerce - a mecânica. O outro é a mãe, sem maiores estudos, dada aos afazeres domésticos e a cuidar do marido. Logo, o cenário ocupado pelo menino é de total emparedamento para o nascimento de uma sensibilidade poética. Entretanto, contra a ordem comum, assim como é a poesia, é justamente nesse cenário pétreo que o menino se lança a escrever versos. O conto me retoma o poema de Carlos Drummond de Andrade em A rosa do povo: "Uma flor ainda desbotada/ Ilude a polícia, rompe os asfalto./ Façam completo silêncio, paralizem os negócios/ garanto que uma flor nasceu." Chama-se "A flor e a náusea", o poema.

***

Dói-te alguma coisa?
Dói-me a vida, doutor.

*
E o que fazes quando te assaltam essas dores?
O que melhor sei fazer, excelência.
E o que é?
É sonhar.

*
Não continuas a escrever?
Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida – disse, apontando um novo caderninho – quase a meio.



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