Ler a Odisseia (parte III)

Por Pedro Fernandes


Detalhe de um vaso grego. Pelike ática de figuras vermelhas do Pintor de Licáon. Data c.-440. Boston, Museum of Fine Arts. Fonte: Portal Graecia Antiqua.


(Na imagem) Ulisses no Hades. Ao seu lado o deus Hermes e à sua frente a sombra de Elpenor, antigo companheiro que morre quando da sua passagem pela ilha de Circe. A súplica de Elpenor se insere na trajetória do herói como prenúncio do fim de uma viagem a que qualquer um pode está destinado: o do esquecimento. Aponta para a conservação da memória como necessidade à própria existência.

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Comumente nos referimos ao ato de viajar como um processo de fuga do lugar-comum e de renovação do tempo - “Viajar é preciso senão a rotina te cansa”, dirá a música. A experiência da viagem traz implícita ainda o exílio, o desejo pelo desconhecido, pelo crescimento espiritual, em busca de novas vivências e experiências. Se pensarmos mais entenderemos que a nossa própria vida é uma viagem terrena que dura o tempo que vivemos - “Para viajar basta existir”, dirá o poeta. Também está associada ao movimento psíquico que empreendemos à volta de nós mesmos numa busca seja do autoconhecimento, seja por uma resposta para uma determinada questão. “É viagem o que está à vista e o que se esconde, é o viagem o que se toca e o que se adivinha” - dirá José Saramago. E em qualquer uma delas traçamos determinadas metas de perto ou longo alcance que devemos, no seu intercurso, alcançar; no fim de qualquer uma  fazemos sempre um retorno no qual avaliamos nossa empreitada. 

A ideia de viagem na Literatura está associada também ao movimento percorrido pelas personagens e a aquisição de sua parte de uma renovação de seu caráter; está associada aos ritos de passagem, queda ou ascensão do herói.

Tudo isso servirá para dizer que na Odisseia presenciamos todas essas possibilidades. No poema homérico, a viagem se realiza simultaneamente em dois espaços, no geográfico e no mítico. Como sabemos, as personagens têm os seus mais simples movimentos atrelados a um deus; desde o ato de dormir ao de acordar às atitudes e volições humanas mais simples são decididas e/ou comandadas pelas entidades superiores. Claro está já no Canto 1 do poema em que assistimos a um conselho de deuses no qual Palas Atenas consegue permissão de Zeus para ajudar a Ulisses na volta para Ítaca. A decisão aí tomada estabelece o mote para o sucesso da empreitada desenhada pelo herói e para a saída de casa do filho de Ulisses, Têlemaco, que sem notícias do pai, sai vagueante à cata de algum sinal seu. Se para Ulisses esse processo pode ser lido como uma trajeto que beiraria ao da gnosis para o filho seria o da emancipatio

De modo que, a Odisseia se configura e é, um dos percursos primordiais do homem, num poema de viagem. Dez anos após ser forçado a sair de casa para ir lutar na Guerra de Troia, empreendimento que é narrado na Ilíada e retomado em passagens do texto aqui em questão, Ulisses, um dos heróis, faz seu trajeto de volta que levará outros dez anos. Os vários movimentos empreendidos ao longo dos 24 cantos convergem para um regresso; o regresso de um homem à sua casa e ao seu destino conjugal. 

Também é o regresso de um homem à sua memória, constantemente invadida e ameaçada de morte, não fosse o zelo astuto de Penélope, sua esposa, e de Têlemaco. E não posso deixar de relembrar de uma passagem nesse trajeto de Ulisses que ilumina o leitor para o estágio em que o herói encontrará, no fim, sua morada e a ameaça de apagamento da sua memória: é quando Ulisses aconselhado por Circe desce ao Hades para consultar-se com Tirésias e encontra-se com os fantasmas de sua mãe e dos heróis gregos mortos na Guerra de Troia. Num desses encontros, topa ainda com Elpenor, um de sua tripulação cujo espírito vagueia porque o corpo foi abandonado insepulto. A súplica do guerreiro se insere na trajetória do herói como prenúncio do fim de uma viagem e o resultado a que qualquer um pode está destinado: o do esquecimento. Aponta para a conservação da memória como necessidade à própria existência.

Impossível será, para o leitor, não perceber que o trajeto seguido pelo herói reveste-se de todas aquelas características que vimos dizendo nos dois primeiros parágrafos. O percurso de Ulisses é inicialmente o de um exílio forçado, simultaneamente imposto e autoimposto, para depois se firmar como um percurso invadido pela sorte dos deuses que o destinam ao desconhecido e que o levará pela astúcia (até determinado ponto) ao descobrimento das circunstâncias e saídas delas. O texto de Homero pode ser identificado então por aquilo que disse certa vez, Mario Vargas Llosa: “Entre muitas coisas que Ulisses foi, há uma constante na literatura ocidental: o fascínio pelos seres humanos que rompem limites, aqueles que, em vez de ceder à servidão do que é possível, se empenham, contra toda a lógica, na busca do impossível”.

A viagem empreendida pelo herói com todos os seus périplos em busca do lar, da pátria e do amor, não terá seu fim quando o poema termina. Depois de ter alcançado Ítaca e de ter sido gradualmente recepcionado pelos de sua casa, Ulisses partirá para outro ciclo de viagens, demonstrando que a vida é cíclica ou como bem disse José Saramago: “O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que já se viu, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite”.


 

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