A cabeça do santo, de Socorro Acioli

Por Pedro Fernandes



Socorro Acioli faz parte de uma nova geração de escritores – ainda um seleto grupo, diga-se – que tem se formado a partir da convicção de que a literatura não é mera fruição, é, sobretudo, técnica e exercício que podem ser aprendidos. Muito comum em países como Estados Unidos os cursos para formação de escritores há algum tempo fazem parte dos que alentam o sonho pela escrita e já revelaram, nesse processo, nomes importantes da cena literária contemporânea por lá. Acioli, depois do curso em jornalismo e de enveredar em pós-graduações em estudos literários, foi buscar essa formação escritural não em terras do Tio Sam, mas em Cuba; chegou a ser aluna de Gabriel García Márquez numa oficina sobre o conto. A cabeça do santo, seu primeiro romance, nasce sob as bênçãos do colombiano Prêmio Nobel de Literatura.

Isso tudo serve de contextualização para o lugar de gênese deste texto e não necessariamente um desenho do perfil da escritora que já trilhou em outras searas como as do ensaio biográfico e a literatura infantojuvenil, esta última, a que lhe permitiu angariar o Prêmio Jabuti em 2013. É preciso dizer que esta não é, portanto, uma obra produzida apenas a partir das lições na sua formação em Cuba, mas gênese de uma longa vivência com a escrita e também, pelo que o romance tematiza, com o lugar cultural da escritora (nascida em Fortaleza, Ceará) e uma tradição literária – a que lhe antecede e a que se forma juntamente com ela.

A cabeça do santo faz fronteira com a literatura popular – o cordel, o causo, a fábula, as histórias orais – e a literatura erudita – o romance maravilhoso e o fantástico aperfeiçoado pela literatura latina de nomes como o próprio Gabriel García Márquez, o romance picaresco da literatura espanhola, o romance de 1930 da literatura brasileira e antecessores como o escritor José de Alencar; deste último a ressonância salta no papel quando a certa altura, na descrição de Mariinha salta um "uns olhos de mel de jandaíra" (grifo meu). Tudo, harmoniosamente bem aproveitado na construção estrutural da narrativa que se reveste do tom de seu tempo: a objetividade, a não linearidade do narrado, a fragmentação e o diálogo, ainda que tímido, com a linguagem poética. Digo tímido, mas sabedor do propósito da romancista com isso – o seu romance, antes de ser um exercício estético, quer ser um exercício formal. E é dos bem feitos.

É impossível não se encantar com o texto de Socorro que coloca em cena a personagem de Samuel, filho sem pai, criado por uma simples mulher do interior do Ceará, que vai, depois que a morte a leva, por um sertão mítico e místico, à cata de seu passado – não o vivido a longo tempo com sua mãe Mariinha aos pés do Horto, em Juazeiro, mas o passado que antecede sua gênese, o de saber sobre o pai, quem a mãe nunca teve coragem ou necessidade de buscá-lo. A cabeça do santo é, portanto, travessia. Está entre um presente, o lugar da personagem principal, e o seu passado, sendo Samuel o elo entre essas duas pontas do tempo que não figura no romance como estrutura circular, mas movimento espiralado, num constante ir e vir como se estivéssemos diante de um narrador que mesmo em terceira pessoa assume a função de um contador de história, o mesmo do cordel, do causo, das histórias orais.

Concluída a viagem entre Juazeiro e Candeia – o lugar designado pela mãe depois de sua morte – Samuel vê-se enviado para uma situação ainda mais escassa do que a vivida em terras de romaria (foi daí, aliás, que Mariinha tirou todo seu sustento e aí também poderia ser o lugar do filho). “A poeira, os gatos magros, tudo sofrendo de falta de vida” – aí é Candeia que muito relembra daqueles lugarejos encravados no meio do nada, em pleno sertão nordestino; aqueles que o viajante comum passa e se pergunta como aquele povo ali chegou, o que fazem, do que vivem.

Recepcionado por uma avó misteriosa que muito tem das primeiras habitantes desse mesmo sertão nordestino de ninguém, e não tendo notícias sobre o pai, como achava que teria (era sua missão dá cabo da vida do sem futuro que embarrigou a mãe para abandoná-la), Samuel é enviado para passar uma noite longe do frio e da chuva no interior da cabeça de um santo. O lugar logo se tornará sua nova casa. O encontro com Francisco, um rapazote filho do coveiro de Candeia, deixará Samuel a par do lugar e de onde está metido; a princípio, é de interesse do intruso apenas ficar o tempo de sarar uma ferida formada do ataque de um bando de cachorro doido. Mas, ao descobrir-se dotado do poder de ouvir os pedidos de casamento das moças das redondezas (a cabeça do santo é de Santo Antônio), Samuel preferirá tirar uma vantagem sobre isso. Depois de bem sucedida uma peripécia casamenteira e de provocar uma reviravolta no seu destino e no destino de Candeia, ele resolve ficar por mais quarenta dias enquanto tira uns trocados com as promessas de milagre.

Uma história assim, entretanto, não resistiria se, não houvesse a presença de um opositor e de um grande amor – o prefeito de Candeia e a voz misteriosa que não faz pedidos de casamento a Santo Antônio, apenas canta mornas (um tipo de cantiga africana) diariamente. Essas duas intrigas serão as responsáveis por desvendar a intriga gestora do romance, quem é o pai de Samuel. Como herói ou pícaro, a personagem criada na narrativa de A cabeça do santo assume o lugar de quem sempre prefere duvidar da situação ou de quem não aceita a realidade como ela é posta. Isso não é gratuito: Samuel cresceu num ambiente em que presenciou os dois lados de uma situação – a fé cega dos romeiros chegados de toda parte do nordeste e as artimanhas dos que fazem disso um negócio (tanto que em Candeia, mesmo contra sua vontade, irá assumir esse lugar de valoração capital da fé, num negócio acobertado pela imprensa, pela religião e até certo limite pela política, mas sabedor de que o está fazendo não é o certo): “Santos são pedras e só pedras”; “Desgraça é tudo coisa de se rir.” Mas, será?

“Gostaria de tirar a carne das palavras. Que cada palavra fosse um osso seco ao sol”. O desejo de Clarice Lispector revelado nessa frase se realiza em A cabeça do santo. Os elementos motivadores e a leva de situações que esse romance evoca faz sua brevidade se transformar em grandiosidade. E isso só é possível pela forma de contar escolhida pela escritora e por certa desnaturalização poética da palavra e a perda do interesse pelos minimalismos ou a obrigação de aclarar todas as situações: “Quase dez horas de caminhada por dia. Pouca água, comida rara, sono em cotas breves. Tudo ficou pelo caminho: a juventude, alegria, pedaços de pele, mililitros de suor, quilos do corpo, e os parcos e velhos fios de esperança de que houvesse alguma coisa invisível que ajudasse os homens sobre a Terra.” E no fim, tudo é nebulosa (o gesto poético materializa-se na totalidade do romance); tudo está entre o limite do realizável empiricamente, do por realizar, ou realizável apenas pela via da imaginação. Também, é este um romance imagético, cinematográfico. 

Enfim, Socorro Acioli chega bem ao romance. Apresenta-se como possibilidade de uma nova e boa época em que se é possível ler uma boa história escrita por um brasileiro com tanta brasilidade – sem ir pela via comum, a da narrativa urbana com seus bandidos heróis, ou a dos exercícios escabrosos da arte pela arte. Oferece, ao invés disso, os resquícios de uma parte outra do Brasil que não ficou perdida nas primeiras incursões da literatura regionalista. A beleza deste romance está, justamente, em propor uma renovação do imaginário nordestino que tanto tem ainda a oferecer em matéria de literatura.


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A cabeça do santo
Socorro Acioli
Companhia das Letras, 2014
176 p.



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