Federico García Lorca: aquele loiro de Albacete

García Lorca e Rodríguez Rapún

Que tamanho deve ter o amor para ser amor? Quem inspira uma obra e como se forja a personagem que evoca um sentimento? Betriz Portinari ou Felice Brauer viviam na mente de Dante e na de Kafka. Sabemos que os sonetos de El rayo que no cesa não era dirigidos apenas a Josefina Manresa, a mulher de Miguel Hernández; que Maruja Mallo e María Cegarra também foram musas do poeta e isso não modifica seu valor literário; ao contrário, acrescenta dados para a construção dos parâmetros interiores da literatura. A vida sentimental de Federico García Lorca poderia comparar-se com algum dos dramas que escreveu. O amor que não está na obra Bodas de sangue, mas a paixão, convertida em luz e harmonia transborda em seus Onze sonetos do amor obscuro, uns versos cuja redação começou em 1935, meses antes de ser assassinado, e que permaneceram inéditos por quase cinquenta anos, duas datas significativas no romance negro em que se converteu sua vida, mas conhecemos realmente quem os iluminou.  

A história nunca acaba de ser escrita e aí está um de seus atrativos. À antologia poética de Lorca se acrescenta um romance ocasional e com ar popular. Está escrito pela primeira vez e única, provavelmente com uma caneta azul e vermelha de duas pontas: “Aquele loiro de Albacete / veio, mãe, e me olhou / Não posso olhar você! // Aquele loiro dos trigos / filho da verdade aurora / alto, só e sem amigos / pisou minha rua na hora errada [...]” Este poema só foi descoberto agora em 2014; estava escrito no verso de nota da Academia Orad de 1º de maio de 1935 e dedicado a Juan Ramírez de Lucas. Até então os estudiosos da obra do poeta acreditavam ser Rafael Rodríguez Rapún, com quem dividiu uma relação sentimental frustrada, o grande inspirador de Onze sonetos do amor obscuro, mas a última carta de que se tem notícia, o poema inédito e o testemunho do crítico de arte Juan Ramírez de Lucas, questionam determinados aspectos: Rodríguez Rapún foi um grande inspirador ou houve mais musos?

No último ano de sua vida, Lorca andava louco por um rapaz com quem pensava viajar ao México. Sua amiga, a atriz Margarita Xirgu, chegou a lhe enviar a passagem, mas o poeta adiou a travessia até conseguir a permissão do pai para viajar com seu amigo de 19 anos. Embora o menor em Albacete se retraísse ante a negativa paterna, Lorca escreveu ao jovem o que logo se converteria na última carta de que se tem conhecimento, fechada em 18 de julho de 1936, no mesmo dia da rebelião nacional. Chamava Juanito e se despedia com um carinho e íntimo “deste rechonchudo que tanto te quer”. Entre a data do poema e a da carta havia se passado 14 felizes meses. É provável que alguma migalha daquela paixão tenha caído em alguns dos incendiados versos em que se destaca a juventude do destinatário e a idade do poeta: “Não me deixes perder o que ganhei / e decora as águas de teu rio / com folhas de meu Outono alienado”.

Juan Ramírez de Lucas em 1987. 

A maior parte dos protagonistas desta história já morreu. Restam alguns amigos, poucos, e todas essas coisas que nos chegam como as cartas, os quadros, os poemas ou os lugares. Ou como o antigo clube Anfistora, onde se conheceram García Lorca e Juan Ramírez de Lucas, que agora faz parte das dependências do Ministério da Cultura em Espanha. Na casa das sete chaminés se preparavam então os ensaios de Peribáñez y el comendador de Ocaña. Com apenas 18 anos, Ramírez de Lucas alternava os estudos de administração pública com sua sonhada vocação artística. 

Alto, louro,  filho de um médico forense e com ganas de devorar o mundo, Ramírez de Lucas encontrou na Madrid republicana a liberdade a que todo jovem aspira. Quando Pura Ucelay os apresentou, já ele sabia quem era o poeta. Aos 37 anos, Lorca se encontrava no momento de plenitude de sua carreira. Começava a ser traduzido em outras línguas: Nova York, Buenos Aires e Havana já haviam se rendido aos seus pés; preparava a estreia de Yerma no Teatro Espanhol com Margarita Xirgu trabalhando no cenário, com convidados como Unamuno, Valle-Inclán e Benavente, e acabava de fechar o projeto de La Barraca, para percorrer os povoados de Espanha durante três anos interpretando suas obras.

Enamorado, muito apaixonado e caprichoso, Lorca arrastava atrás de si toda uma corte de rapazes dispostos a tudo para sair do anonimato, mas Ramírez de Lucas não foi em groupie. Chegou à vida do poeta quando a relação sentimental com Rodríguez Rapún se desmoronava devido sua bissexualidade, embora o trato de ambos fosse sempre cordial. A tese de Manuel Francisco Reina, autor de Los amores oscuros, o romance que recria a relação do casal, sustém que ambos viajaram juntos a algumas cidades, mas Ramírez de Lucas não pode acompanhá-lo a Valência para a estreia de Yerma, em 1935, porque devia assistir em Cuenca as práticas da Academia Orad. Ambos deslocamentos marcariam a vida de seus protagonistas. Precisamente na capital de Turia Lorca começou a rascunhar uns sonetos que não colocou título. Escrevia em folhas de papel dos hotéis por onde passava – um dos primeiros intitulado O poeta pergunta a seu amor pela Cidade Encantada de Cuenca leva o timbrado do valenciano Hotel Victoria: “Gostou da cidade que gota a gota / trabalhou a água pelo centro dos pinheiros? [...] Não viste pelo ar transparente / uma dália de penas e alegrias / que te mandou meu coração quente?”.

Federico García Lorca e Rodríguez Rapún


À medida que avançava em sua escrita, recitava os versos aos amigos. Vicente Aleixandre se referiu a eles como um “prodígio de paixão, de entusiasmo, de felicidade, de tormento puro e ardente”. Pablo Neruda os escutou na Casa das Flores, a residência em Madrid do poeta chileno pouco antes de irromper a Guerra Civil, e concluiu que eram de “extraordinária beleza”. Viajou com os rascunhos a Granada e seguiu lapidando e substituindo adjetivos, escondido no sótão da família Rosales, de onde saiu detido e foi fuzilado horas depois.

Poeta em Nova York foi publicado quatro anos depois de sua morte, mas os sonetos tardaram quase cinco décadas em fazer-se públicos. O material sobre o qual trabalhava nos últimos dias de sua vida o autor de Llanto por Ignacio Sánchez Mejías foi entregue pela família Rosales aos Lorca antes de partirem para o exílio.

Não se conhecem cópias datilografadas, nem testemunhos de sonetos que não tenham sido encontrados, embora pareça que o conjunto de poemas projetado teria um alcance maior.  Os manuscritos dos Onze sonetos do amor obscuro, a lápis e repletos de rasuras e correções, se conservam nos arquivos da família. Apenas se guarda, além dos rascunhos, uma cópia passada a limpo que foi entregue a Universidade de Harvard. Existiu um manuscrito mais completo e definitivo? Algumas testemunhas apontam essa direção, mas até agora nada mais foi encontrado. 

Alguns poemas foram sendo publicados de forma solta até que, em finais de 1983, 250 amantes da obra do poeta receberam seus domicílios uma edição clandestina com os 11 sonetos. “Havia sido depositado na caixa dos correios. Chegou num envelope vermelho, um caderninho com capa coberta com uma folha e sem remetente”, conta agora Félix Grande, um dos que receberam aqueles exemplares. Hoje ainda é uma incógnita quem os enviou. Quatro meses depois, em 17 de março de 1984, o jornal Abc publicava a primeira edição oficial, um caderno de 16 páginas. As assinaturas de Fernando Lázaro Carreter, Miguel García Posada e um artigo de Manuel Fernández Montesinos, sobrinho do poeta, acompanhavam os sonetos.

Surpreendentemente, Ramírez de Lucas formava parte da equipe do jornal Abc; era colaborador de arte e arquitetura. Depois de terminar a carreira na antiga Escola de Jornalismo, chegou ao diário pela mão de Luis Rosales, com quem sempre se manteve junto e o único que era ciente da sua relação com Lorca. No jornal desenvolveu boa parte de sua carreira e, seguramente, seguiu muito de perto todas as reuniões e decisões que levavam a cabo no despacho Luis María Anson; isso quando se preparava a publicação dos sonetos. 

Mas, Ramírez de Lucas nunca confessou seu segredo. Enquanto sua mãe viveu – ela morreu com 101 anos – manteve sua promessa de silêncio. Calou-se, mas algumas feridas não se fecharam. Autor de numerosos títulos, como Arte popular, um volume de capa dura e fotografias coloridas publicado em 1976, se lê, além de uma citação de Lorca, a dedicatória para sua mãe e seus nove irmãos, com os nomes de cada um, mas choca a ausência da figura paterna. Alguns de seus irmãos o apoiaram abertamente, como Otoniel e Antonio. Com Carmen, pintora naif, passava largas temporadas em Mallorca, e com Dolores, monja de clausura, a cumplicidade foi tal que a religiosa guardou os documentos remanescentes daquela desgraçada relação sentimental com o poeta enquanto lutava na Divisão Azul.  

Dedicatória de Lorca para Rodríguez

Em muitas situações, Ramírez de Lucas buscou aproximação das pessoas relacionadas com seu antigo amor. O poeta Juan de Loxa o conheceu nos anos em que dirigia a casa museu de Lorca em Fuente Vaqueros. “Esteve em casa muitas vezes, mas nunca mencionou nada que pudesse fazer pensar que houve uma grande amizade entre ambos. Nos conhecemos no Círculo de Belas Artes; o encontrei muito afável, com essa distância dos senhores de outra época que não te chamam de você. Se notava sua admiração incondicional por sua obra e apenas uma vez, isso lembro agora avivando ideias e atando fios, o notei muito impressionado”. Foi quando se falou de Eduardo Rodríguez Valdivieso, um rapaz de sua mesma idade, com quem Lorca havia tido uma relação sentimental muito forte em Granada. Se conheceram num baile de máscaras, estava vestido de arlequim e Lorca de peça de dominó e aí surgiu o amor repentino. Durante quase cinquenta anos manteve em segredo as maravilhosas cartas que o poeta lhe escreveu (“Em Madri faz um outono delicioso, recordo com ligeira melancolia, quando eu era um adolescente e ninguém havia me amado ainda”), até que, pouco a pouco, foi libertando-se de preconceitos e entregou a correspondência à Fundação García Lorca.

Como Loxa, muitos amigos ainda não assimilaram seu segredo. Ramírez de Lucas não dava a impressão de ser um desses tipos que ocultam algo de seu passado. O pintor Antonio López o conheceu há muitos anos. Fez uma entrevista com ele para uma revista de arquitetura e o artista o presenteou com um desenho: “Uma cabeça de um cachorro que me serviu para um quadro que fiz em 1963. Conservei até sua morte, mas agora, terei que leiloá-lo”. Como crítico reputado, Ramírez de Lucas chegou a fazer  uma boa pinacoteca. Das paredes de sua casa, na rua madrilena de Caballero de Gracia, muito próxima a Gran Vía, além da obra de López que agora foi adquirida por herdeiros, há um desenho de Picasso, pinturas de Miró, Tàpies, Viola e Benjamín Palencia, entre outros.

Só uma das muitas pessoas que têm investigado a vida de Lorca descobriu essa relação secreta: Agustín Penón. Desde Granada, a escritora Marta Osorio, editora de Miedo, olvido y fantasia, a crônica de sua pesquisa sobre o poeta, assegura que a única referência sobre Ramírez de Lucas entre os papeis é a que incluiu no livro. Tampouco encontra a chave que clareie porque deixou toda a documentação que tinha em seu poder numa maleta sem atrever-se a publicá-la. “Descobriu uma história tão tremenda (desde  a partida de morte até a primeira entrevista com Ramón Luis Alonso, a pessoa que o deteve) que nunca repousou nem física nem mentalmente. Caiu enfermo. Era um Quixote, um tipo honesto que nunca tomou uma dura com isso”. Como muitos protagonistas desta história.

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OS AMORES DE FEDERICO GARCÍA LORCA

Federico García Lora tinha 18 anos quando acompanha sua mãe ao balneário de Lanjarón. Aí conhece María Luisa Natera. Tocam juntos piano. Dedica-lhe alguns poemas. É um jovem de sexualidade adormecida e ela uma jovem com piano. Nada mais. Os amantes de Federico foram muitos. Na Espanha e na América. Mas quatro têm um peso real em sua existência e em sua obra: Salvador Dalí - os dois se conhecem em 1922 na Residência de Estudantes. Um jovem artista excêntrico e um poeta andaluz de riso solto. A fascinação foi mútua e instantânea, embora pareça que findou em fascinação e nada mais. A relação acabou em 1929. Emilio Aladrén - escultor que Federico conheceu em 1925 e com quem manteve uma relação a partir de 1927. Aladrén deixou o poeta por uma jovem inglesa, Eleanor Dove, representante de uma empresa de cosméticos. Federico entrou, pouco depois, em depressão. É 1928. Vai para Nova York. Rafael Rodrígues Rapún - foi o mais apaixonado dos amantes de Federico. Conhecem-se em La Barraca, em 1933. E a relação dura até a morte do poeta. Foi apaixonada e difícil. Rapún também era bissexual. Para ele, Lorca escreve os Onze sonetos do amor obscuro. Juan Ramírez de Lucas - crítico e arte no jornal ABC, manteve com García Lorca uma cúmplice e discreta relação. O registro dela está no diário e nas cartas que Lucas  que manteve com o poeta. Eduardo Rodríguez Valdivieso - foi apenas um amor fugaz, como tantos outros, que começou depois do regresso de Nova York em 1929 e, durou sobretudo em Buenos Aires, em 1935.

Ligações a esta post:
Leia mais detalhes sobre a relação entre García Lorca e Ramírez de Lucas, além da íntegra do poema inédito que o autor de Onze sonetos... dedicou ao loiro de Albacete, aqui.

* tradução livre e resumida de "Aquel rubio de Albacete", de Amelia Castilla.



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