Serpentina, de Mário Zambujal

Por Pedro Belo Clara



Temos hoje diante do olhar o derradeiro trabalho de uma das figuras mais multifacetadas, bem dispostas e queridas do público português: Mário Zambujal. Lançado no passado mês de Outubro, trata-se de um produto fiel a tudo quanto o autor cultiva em suas produções. Dir-se-á, portanto, que este novo prolongamento do  percurso literário dobrou, com efectivo sucesso, mais uma esquina do sinuoso caminho de expressão artística, trilho esse que ostenta, como bem se entende, uma índole evolutiva.

Não será possível falar de Mário Zambujal sem nos referirmos ao grande êxito de estreia, Crónica dos Bons Malandros, o tal trabalho que só se completou, conforme a confissão do autor, quando “mudou” a sua família de casa e promoveu uma garrafa de whisky ao estatuto de “fiel conselheira”, granjeando assim a quietude e a concentração necessárias ao cumprimento de tamanha tarefa. O esforço foi sobejamente compensado, sabe-mo-lo hoje, pois mais de trinta anos volvidos desde o  lançamento a obra continua a cativar novas gerações de leitores. Conheceu inclusive uma competente adaptação ao cinema, levada a cabo por Fernando Lopes, e, mais recentemente, originou um musical de razoável sucesso. No entanto, e para que se sublinhe o carácter aventureiro deste autor, no que à produção escrita e não só diz respeito, destacamos os diversos textos para televisão, rádio e teatro, à parte dos romances, contos e crónicas editados. Escritor de formação jornalística, notabilizou-se de igual modo na apresentação de um famoso programa televisivo de desporto. Essa razão, entre muitas outras, naturalmente mais anexadas ao carácter bem-humorado da sua escrita, tê-lo-ão tornado na acarinhada figura que é.

O romance em questão apresenta-se, como é habitual neste autor, de leitura simples e agradável, composto num estilo relaxado e subtilmente divertido – apesar do enredo que tece e dos imprevisíveis desfechos com que brinda o leitor. Na verdade, essa capacidade de aliar a simplicidade de certos processos de escrita com a seriedade que certas narrativas detêm revela-se em Serpentina um trunfo de relevo. Não que romances bem-humorados devam ser exclusivamente superficiais, antes detentores de enleios cativantes e revelações surpreendentes quando o momento se apresenta propício. Por isso mesmo se considera esta obra uma aprazível surpresa que com grande agrado se desfolha, quer seja pelas cómicas, porque desajeitadas, deambulações do herói da narrativa quer pelo carácter de investigação e perseguição, ao bom estilo policial, que em determinados instantes se impõe.  


Serpentina define-se na perfeição através daquilo que o próprio livro diz de si mesmo: a «odisseia de um crédulo em demanda da bela sem senão». Centramo-nos, assim, nas aventuras de Bruno D. L. Bracelim, logo iniciadas num momento de crise, personificado pelo fumo branco que, em plena avenida, vai sendo expelido pelo motor de um carro a rogar a sua extrema-unção. A partir daí, intensificada a narrativa com um embaraçoso atropelamento, sem vítimas que se contem, o curso da história, como convém a princípio ainda obscuro, inicia o seu fluir.

É claro que nada do que agora se escreveu parece se relacionar com a definição anteriormente transcrita. Isto porque o romance apresenta um carácter dual que em contornos límpidos, mas bem conciliados, se desenvolve: o encadeamento de diversos estranhos acontecimentos na vida de Bruno e, paralelamente, como dissemos, a sua incessante busca pelo “rosto de mulher perfeito”. Note-se que até a um certo momento a dita “bela sem senão” será aos olhos de Bruno a inquestionável detentora de tal rosto – o perfeito. Posteriormente, a justa divisão será conseguida, mas não sem impedir a quebra do coração que lhe assiste. (Parece o caso alertar para a fina linha que separa o amor da paixão, o interior do exterior, a certeza da ilusão). No término da narrativa, concluirá o leitor que tudo converge sem o menor conflito: nem entre personagem nem entre tramas que páginas antes haviam sido abordadas. Prova tal evidência, como se depreende, a sóbria maturidade do autor, transposta num romance que, por esse mesmo motivo, reevoca o prazer de ler livros compostos em sublime mestria, em sólida competência.

Restará acrescentar que o romance não se prolonga por mais de cento e cinquenta páginas, ao longo de dez capítulos. Se assim não fosse, certamente pisaria, com a devida penalização, a fronteira que separa o entusiástico do fastidioso. Cada capítulo inicia-se com caracteres diferenciados (sendo o restante corpo do texto, já normalizado, em certas ocasiões uma analepse) e ocorre sempre no mesmo espaço físico, seja manhã ou noite: o terraço da casa de Bruno, palco das mais íntimas indagações, mas, principalmente, palco do avistamento de um misterioso vulto que, então revelado, irá cambiar por completo o rumo de vida do nosso protagonista. É deveras interessante reparar, aqui, na abordagem do autor ao misticismo que parece reinar entre os rostos que de noite, na cidade, se sondam uns aos outros através de janelas, varandas ou terraços, olhando-se sem que, em regra, tenham a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre os mundos de cada um. O romance, no entanto, irá contrariar essa real tendência, não sem antes dar razão ao mote que sobre ele parece desde logo reinar: «nada é mais imprevisível do que o passado». O resto, por ora, ficará entregue à imaginação do leitor.

Num registo descontraído e bem disposto, onde até a estranheza dos nomes das personagens, como é habitual neste autor, sublinha o cariz divertido do texto (recordemos a Edviges, o Dionísio Trança, o Doutor Talamita), além da curiosa insistência em apresentar por extenso os estrangeirismos aceites na nossa língua (afeter-cheive, jines, tichârte, blêiser), apresenta-se uma obra de leitura tão prazerosa quanto o sorriso que no final certamente despontará nos lábios daquele que se decidir a apreciá-la.

«Do terraço, tanto posso espreitar a travessa como, de longe, ver os prédios da avenida paralela. (…) Em linha recta, chegam-me os olhos a outros estimados terraços. Por ali repousa e se move, em noites amenas ou agrestes, uma esguia figura de mulher. Não a conheço. Ou melhor, não sei se a conheço. O escuro e a distância vedam-me a definição da face, nem sei se será jovem ou menos jovem, loura ou morena. Habituei-me a considerá-la parceira no gosto de sorver no terraço o ar das noites.»

 ***

Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).

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