Pescador

Por Jeferson de Carvalho



Eu lembro das cores. Ou melhor, da confusão de tons que o rio assumia naquele fim de tarde. Lembro-me de falar, ou pensar, não sei bem ao certo, as lembranças não ficam guardadas em departamentos à disposição do usuário, que tudo aquilo era parecido com um quadro que uma professora havia mostrado na escola. Meu pai perguntou se era a pintura de um rio, mas eu logo disse que não, que era uma pintura borrada, cheia de cores, assim como o rio naquela fatia de tempo. Pensando hoje, não sei se respondi corretamente à pergunta de meu pai, será que não era um rio que o artista pintara? Nunca mais vi aquele quadro. Gostaria de vê-lo novamente, mas teria que falar com minha antiga professora, e ela eu também nunca mais vi. Nem lembro do nome dela, lembro do cheiro, um perfume forte e gostoso. Lembro das coisas pelas coisas. Do primeiro dia que andei de bicicleta, lembro através do joelho ralado devido ao tombo; do primeiro dia de escola, lembro através das mãos firmes de minha mãe esperando a professora chegar. Assim como eram das luzes que lembro daquele dia. Algumas vezes, quando acho que a memória irá me trair, lembro das luzes e a conversa surge berrando em minha cabeça acompanhada das imagens.

Fiquei lá, admirando essa confusão de luzes até o grito de meu pai para que pegasse o restante das coisas. Lembro da sensação que aquilo tudo me causava. Era como se fosse um rito de passagem, uma mensuração da hombridade, ali, naquela beirada, era como se o mundo afirmasse que eu havia me tornado homem. O veredito que corroborava com essa sensação era o olhar de meu pai para mim como um igual. Ele não disse “guri, não mexe nisso aí” ou “isso aí não é para brincar”, éramos homens aprontando-se para uma missão, uma tarefa. Coloquei o restante das coisas no pequeno barco, acomodei-as no canto como maças em uma fruteira, cuidando para que uma coisa não amassasse ou danificasse a outra. Meu pai olhou para mim e perguntou se eu conseguiria empurrar o barco sozinho e saltar para dentro, menti, falei que sim sem saber, mas aquilo era necessário, deixar de ser um menino para tornar-se homem, e, assim, abandonei o menino na margem, com medo e receio, e empurrei o barco com força, o coração palpitando e ecoando como um grande tambor, as faces queimando, senti a água alcançar meus pés, meu pai arqueando o corpo para colocar o remo na água. E se eu perdesse a oportunidade de entrar na água e ficasse na margem? Cada vez que pensava nisso, meu corpo fervia mais ainda. Como o tempo é engraçado, posso jurar que as coisas foram exatamente dessa maneira, sem tirar uma só palavra, mas, se falasse com meu pai, ele diria que tudo não passou de um minuto, se muito. Enfim, saltei para dentro do barco e ele deu um leve sorriso de aprovação. Éramos dois homens.

Não sorria muito, na verdade, sorrir não era um de seus verbos preferidos. Assim como estudar e ler. Conjugava em toda sua essência o verbo trabalhar. Em casa, conversava muito com minha mãe, pouco comigo, meus irmãos e irmãs. Meu irmão saíra de casa para assumir uma menina bonita que morava perto de casa, lembro do olhar de aprovação de meu pai quando meu irmão deu a notícia. “Homem que é homem deve ter uma esposa, uma família e um trabalho honrado” afirmava. Meu irmão tinha tudo isso, apesar de que eu não considerava uma dádiva trabalhar na pedreira da cidade. Eu sempre havia sido o diferente, gostava de ler e estudar. Meu pai trabalhava na empresa de água da cidade, 20 anos de serviços ininterruptos deram ao simples operário um salário mais digno do que o vencimento recebido inicialmente. Portanto, tive a oportunidade de cursar o segundo grau. Era o que eu estava fazendo naquele período.

Como sempre, meu pai estava em silêncio, remando lentamente para dentro daquela imensidão de cores que se misturavam e agitavam a medida que o remo e o barco iam rasgando a superfície da água. Ele olhou para mim e perguntou se eu poderia remar um pouco, eu de prontidão sentei na ponta do barco e iniciei a remada seguindo a direção por ele indicada. Enquanto eu remava, ele ia testando o “liquinho” para passarmos a noite. Dois homens sozinhos no meio do rio, ouvindo o silêncio de um fim de tarde.

A certa altura, ele pediu para pararmos, caminhou até a outra ponta e tirou uma lata de tinta com sua essência preenchida por um cimento seco e sem vida. Pode parar de remar disse sem olhar na minha direção e atirou a lata na tela composta por água. Um espaço sem cor rompeu o colorido por alguns instantes e a corda desceu rápida e veloz até ficar esticada proporcionando um forte solavanco.

- Pescaremos aqui.

Apenas com um gesto na minha direção, solicitou as minhocas que eu havia cavado uma hora antes e que estavam em uma segunda lata velha de tinta. Ele desenrolou um pouco da linha que estava enrolada em uma lata e, com grande habilidade, colocou a minhoca no anzol. Perguntou se eu saberia como colocar a isca, minha resposta estava entre meus dedos trêmulos que já seguravam o escorregadio animal que teimava em não esperar sua morte de forma estática. Por três oportunidades isquei meu dedão, o que deve ter produzido alguma satisfação no pobre animal que aguardava seu triste desfecho.  Aguentei em silêncio a dor produzida por cada erro que cometi ao iscar, não queria que meu pai pensasse que não estava diante de um homem.  Queria, naquele momento, ser tratado como os colegas de meu pai, como meu irmão, como um igual. O último erro ocasionou uma lesão um pouco mais profunda, rapidamente limpei e esfreguei o dedo na bermuda como um ladrão a esconder seu crime. O sangue acabou por manchar a peça de roupa, o que certamente causaria danos quando retornássemos e minha mãe descobrisse o pequeno infortúnio. Entretanto, o que me importava, naquele momento, era não passar uma imagem errada para meu pai.

Diante da dor, nervosismo e o inquieto animal que se debatia constantemente, consegui por fim colocar a minhoca no anzol. Desenrolei o carretel com muito cuidado, afinal, não queria errar ou demonstrar não estar pronto para estar ali, esperei meu pai se distrair com um mergulho repentino de um desses pássaros que pescam e atirei a linha na água. Tão rápido quanto o anzol tocou a aquarela de cores que o rio formava, ele virou-se na minha direção e fez um pequeno gesto de aprovação.

Esperava ansiosamente por um peixe que fisgasse a linha e proporcionasse a sensação de puxá-lo da água como um daqueles pescadores que eu vira na televisão. Atirava a linha para frente, para trás, para o lado e nada. Meu pai advertiu para que eu não enrolasse a minha linha na dele quando tentei atirá-la perto da sua. O rio ia perdendo suas cores a medida que o Sol repousava lentamente na montanha ao longe. Não falávamos nada, a excitação por estar ali, na condição de homem, afastava qualquer possibilidade de monotonia. O balanço do barco acompanhava o ritmo lento dos sons naquela hora do dia, os pássaros gritavam esporadicamente em meio a voos solitários, alguns peixes aventuravam-se na superfície do então já escuro rio, era uma melodia silenciosa e, por mais estranho que possa parecer, harmoniosa. Acendemos o “liquinho” e as margens foram sumindo da paisagem. Era noite, revisávamos as linhas, não havia pego um peixe ao menos, meu pai, três bonitos pintados que nadavam com uma linha entre suas guelras ao lado do barco. Entretanto, apesar da escuridão reclamar seu lugar de direito e tudo se transformar em sombras, foi justamente nesse momento que algumas coisas ficaram claras para o restante da minha vida. “Se a linha tremê, puxa ela de leve. Se não, o peixe escapa” sentenciou meu pai enquanto puxava com vitalidade a linha e tirava outro saltitante pintado. “Sabe, pesca é como vivê. A gente tá sempre segurando a linha, tentando pesca alguma coisa. De vez em quando, vem algo bom, algo que a gente qué. Mas, às vezes, pode vim um cascudo, cheio de espinho e que não sirva pra nada. Então o que a gente tem que faze é consegui tira ele da linha sem se machuca muito. O importante é sabe coloca a isca e tá de olho na tremida da linha, tá entendendo? Se tu não cuidar a tremida da linha, pode perde a oportunidade. Na vida é assim mesmo, nem sempre as coisa vão ser boas. Sei que tu pensa em estuda, se alguém melhor. Eu nunca pensei muito nisso, o que tirei do rio foi a firma de água e tratei de aproveitá o máximo. O importante, meu filho, é sabê que a linha tá sempre na nossa mão, e é nossa responsabilidade senti a hora que ela treme. Mas não esquece, o que se pesca ninguém sabe adianta, agora, onde largá a linha e com quem sentá num barco a gente escolhe.”

Naquela noite, não entendi muito bem o que ele estava dizendo. Na verdade, pensei naquilo tudo como mais um sermão de pai para filho, é curioso como as coisas vão tomando sentido aos poucos, sem pressa, como uma velha e boa pescaria, que existe não apenas no ato de iscar o anzol, colocar a linha na água e puxar o peixe, mas, também, na longa espera pela tremida da linha. Demorei toda a minha pescaria para entender aquela conversa. Falamos muito pouco depois disso, ficamos ali, parados, observando a massa escura que passava silenciosa sob nosso barco. Eu queria falar algo sobre o que ele havia falado, mas as palavras tropeçavam nos pensamentos e os pensamentos trombavam com as palavras. Nunca mais falei com ele sobre aquele dia, queria saber se ele sentou ao lado das pessoas certas, se chegou à margem satisfeito, entretanto o tempo é o senhor da compreensão e ele ainda não me era velho amigo naqueles dias. Trocamos poucas palavras até levarmos o barco em direção à margem. O barco tocou levemente a superfície arenosa do rio, aterrissando lentamente. Saltei do barco e o puxei junto com meu pai para cima da areia, comecei a juntar as coisas com cuidado, inclusive os sete pintados que pescamos, sim, no fim, acabei pescando também o meu. Não trocamos palavras amorosas sobre o tão bom foi realizar uma pesca em família, apenas trancamos o barco em um tronco de árvore e caminhamos nas sombras, cada um carregando o seu fardo. E assim, as coisas seguiram-se, meu pai retirou seu barco do rio como qualquer outro homem, não realizou nada grandioso para a humanidade, não inventou a cura para nenhuma doença rara. Todos, um dia, precisamos desancorar, remar para margem, sair do meio do rio e caminharmos para as sombras. Sei que, hoje, estou remando para margem, levando todas as recompensas da pescaria.  Talvez, naquela noite, tenha recebido o maior ensinamento de meu velho pai. Agora, vejo que foi a melhor conversa que tive com ele em toda minha vida. Quando chegamos ao ponto de remarmos para a margem, passamos a pensar em toda a pescaria.


Nas conversas com meus filhos e netos, vez ou outra, bate uma saudade daquela voz, olhar e, por que não, daquele silêncio, vontade de ser filho de novo. Nunca compreendo por que essas lembranças insistem em aparecer, sentar em minha sala, acomodarem-se despreocupadas, ocupando um lugar imenso dentro de minha casa. Talvez elas sejam mentirosas, talvez o rio não fosse tão colorido, o barco não fosse tão grande, a pescaria não tenha sido tão longa, meu pai não tenha sido tão importante, entretanto, uma coisa eu posso afirmar sem correr o risco de ser ludibriado pelas minhas lembranças, o velho sabia pescar. No fim, era tudo que importava.

***
Jeferson é graduado e mestre em Letras. Atualmente professor de Língua Portuguesa e Literatura.

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