Trumbo: a lista negra, de Jay Roach

Por Pedro Fernandes



É cada vez mais visível que os critérios comerciais têm se sobreposto aos de significação do filme para que este figure uma lista de melhores na premiação mais badalada do cinema, o Oscar. Isso tem variado de ano para ano, mas não deixa de ser um dos elementos que deixam em crise o prestígio da premiação. A observação é válida para se perguntar por que Trumbo não está, mesmo que não ganhasse ou fosse forte concorrente, na lista dos melhores filmes. Claro, isso desfaz ainda outra questão, a da crítica especializada que viu na produção de Jay Roach um título entre o mediano e o medíocre.

Sim, mediano, é talvez uma caracterização plausível, medíocre não. O que não é o caso, por exemplo, de Mad Max; e este, sim, está na lista entre os melhores do Oscar de 2016. Trumbo não é medíocre porque é um texto muito bem construído, com figurino e fotografias excelentes e, claro, a irreparável atuação de Bryan Cranston, ainda que se note certos cacoetes da personagem de Breaking Bed, seriado em que sua atuação também ganhou destaque. Alguém disse que ele é grande salvação do filme; não é, mas é a grande peça dessa engrenagem de Roach. Esses elementos são, portanto, mais que significativos para não deixar que essa produção caia no rótulo do filme medíocre. Mas, há outros.

Tem o caso de ser uma cuidada cinebiografia de um dos nomes que mais contribuíram para a indústria do cinema estadunidense, no seu momento de grande auge ou bem poderia ser o de grande crise se levarmos em consideração que muitas das produções tinham, de uma maneira ou de outra, o dedo de Trumbo enquanto os demais tentavam suar para produzir coisa que valesse e não produziam. A maneira encontrada pelo diretor para dar forma a essa história, sim, é questionável. Trumbo, por essa divisão aparente entre dois lados, soa um jogo de competição entre o bem e o mal com a vitória do segundo (se olhamos da perspectiva do eixo contracomunista). Talvez esteja nesse saturado modelo narrativo uma das principais razões para que a crítica torça a vista contra a obra. Afinal, se até os que têm no cinema apenas o gosto de acompanhá-lo percebe essa falha, o que pensarão os que compreendem mais detalhadamente certas nuances do texto cinematográfico? 

Agora, o que faz Trumbo ser uma peça necessária de não cair no esquecimento são duas coisas sugeridas pelo contexto histórico evocado: uma, a reafirmação dos tempos da guerra fria como um grande embuste sustentado pelos Estados Unidos (embuste tornado quase histeria) sobre uma perseguição que, ao que parece, nunca passou do rosnado de cão para gato. Isto é, o filme acaba por reafirmar o que Steven Spielberg trata através de Ponte dos espiões, este definido por aí erroneamente como uma narrativa de espionagem e, por todas as reservas ao filme, o mais coerente seria pensá-lo a partir do termo contraespionagem.

Já a segunda coisa, a mais importante, é: além de rever um período dos mais controversos da história estadunidense é o valor de reparação de uma memória, visto que, o embuste teve seus efeitos desastrosos que foi a perseguição (irônico num país que sempre quis ser reconhecido pelo respeito às liberdades) sofrida por grande parte da classe artística e da gente comum sempre tomada aos olhos do poder pela sombra do comunismo. Esse conteúdo parece ser uma das camisas que o cineasta veste, até porque, foi a posição sempre buscada por Trumbo foi a liberdade de pensamento e a possibilidade de tornar certas questões em debate aberto para e pela sociedade, o que, não significa nenhuma afronta ao poder se esse poder fosse, de fato, alinhado com os interesses do povo. Outro deslize de Roach é, situado numa estética asséptica, a minimização do drama das vítimas que foram perseguidas, inclusive da estadia de Trumbo na prisão em detrimento desse jogo de pingue-pongue criado talvez para tornar mais acessível a história do roteirista. 

Trumbo é assim não apenas o registro pelo cinema de uma vida com viradas interessantes como foi a de Dalton Trumbo, nome dos mais criativos e engajados politicamente que uma vez Hollywood possuiu. Pela segunda condição, foi que se articulou um jogo de perseguição ao roteirista, sempre levando em consideração no auge da chamada caça às bruxas que ele fosse um conspirador à favor do amplo projeto comunista de tomada do poder dos Estados Unidos. Nesse ínterim, entre a extensa dedicação ao seu trabalho, Trumbo praticamente obrigou uma nação a se dobrar ante si pelo seu talento, desconstruindo a tosca ideia muito espalhada nesse período de que comunista é alguém dado a não trabalhar ou apenas a fabricar produções com marca eminentemente políticas.

Não sendo este um gênero de culto na carreira do cineasta, mas um desvio ou a necessidade de se desvincular da formação de certo estereótipo, Roach, acaba por construir uma produção que segue um padrão comum das cinebiografias; vê-se muito preocupado com a fidelidade ao material da história ao ponto de, por vezes, parecer que estamos ante um filme de reconstrução documental sobre a figura-tema da obra. É evidente que à primeira vista isso constitui um zelo pelo material a partir do qual desenvolve sua pequisa de construção da obra, mas ficará sempre uma pergunta: e sua condição criativa? 

Outro elemento favorável ao gosto cinematográfico é a inserção metaficcional quando o filme explora os bastidores do feitio de certas obras consideradas clássicas do cinema estadunidense (Trumbo é autor de alguns dos melhores textos de sempre, como, entre outros, A princesa e o plebeu, Arenas sangrentas, Spartacus) ou ainda a revelação das implicações escondidas por trás de uma premiação como o Oscar. Não é nenhuma vista romântica ou a impressão construída pela mídia sobre esse universo; é sim o desvelamento de como a indústria cinematográfica é ardilosa e interessada na transformação de uma obra em máquina de lucrar. Por esse ângulo, é notável o dilema do qual nenhum criador terá conseguido se livrar, sobretudo quando alcança certa posição social pelo seu valor criativo, a valorização da arte sem incluir nesse termo o valor capital; essa é uma discussão que parece ser muito pertinente, principalmente numa narrativa que ensaia um debate mesmo rasteiro sobre o que é o comunismo. 

Ante uma biografia tão grandiosa e as inserções que a produção faz sobre a maneira de revés utilizado por Trumbo num debate onde prevalece a intolerância sobre o bom senso, isto é, vencer com a arte, aquilo que os desprovidos dela foram, justamente por isso, incapazes de fazer, é junto com outras nuances aqui apresentadas, motivo suficiente para desdizer a opinião crítica que o classifica como uma produção medíocre. Esse julgamento talvez esteja fortemente influenciado pelo mesmo espírito sectarista que levou o roteirista e muitos outros ao centro de uma celeuma porque o grupo dos perseguidores nunca estiveram interessados em ouvir claramente o que esses comunistas falavam. Se rumo tivesse sido outro que não o da repressão poderia ser que Trumbo nunca tivesse produzido o que produziu mas possivelmente teríamos outra impressão sobre a ideia de liberdade rasgada aos quatro ventos pelos Estados Unidos e mais que isso riscaríamos uma página da história da intolerância no mundo. 


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