Spotlight - segredos revelados, Thomas McCarthy

Por Pedro Fernandes



Há filmes que foram criados para causar no espectador qualquer coisa que lhe arranque o mundo das aparências, a realidade dos nossos dias, essa formada de tanto malfeito e que aprendemos desde pequenos a fingir que eles não existem ou pelo menos quando sim estão um bocado distante de nós ou, num processo mais alto da ignorância, em certas organizações não há coisas dessa ou daquela natureza. É preciso dizer que todas as instituições são conduzidas por homens e se há uma coisa que estes não carregam consigo, é a perfeição.

É público, desde a revelação em massa dos casos que a Igreja Católica – que nunca foi exemplo de instituição de boa-fé – acoberta de maneira mais diversa possível, os altos índices de abuso sexual contra menores assim como num passado já distante de nós envolveu-se nos esquemas escusos de tráfico de humanos, como bem demonstra outro filme na linha de Spotlight, dos apresentados mais recentemente, Philomena

Mas, o esquema de proteção aos violadores, por exemplo, é caso que nunca terá passado pela cabeça dos mais argutos e desconfiados da integridade institucional do clero. E é isso uma das tarefas do filme de Thomas McCarthy ao acompanhar uma equipe de jornalismo no trabalho de investigação e apuração sobre a extensa rede de pedofilia na igreja estadunidense e no árduo trabalho de proteção dos corruptores – uma trama que combina o dramático depoimento de vítimas abusadas sexualmente na infância, a compra de advogados e juízes para livrar os setores atingidos da igreja e o silenciamento da mídia em torno dos casos, tudo revelado por uma competente equipe de jornalistas (perdoem a caricatura do Mark Ruffalo nesse filme).

Numa era do mau jornalismo, sobretudo quando vemos escancaradamente a mídia assumir o partido de determinadas causas para o ocultamento sistemático de outras ou ainda a criação espontânea da notícia com base em dados fantasmas, este é também um filme sobre como o bom jornalismo é fundamental para colocar em revelo situações que são de interesse coletivo mas que, sem os jornais, nunca chegariam além dos limites das fronteiras onde se dão essas situações. Ainda nesse sentido, é preciso citar o contexto que poderia resultar naquilo que os jornais mais têm trabalhado ultimamente; o diário onde trabalha a equipe Spotlight é uma pequena mídia tragada por uma grande corporação que busca redefinir sua posição perante os leitores numa ocasião de ascensão da internet. Nem por isso, ousaram ter o chamado ideal ético corrompido para fazer valer a todo custo a audiência e o lucro como tem sido corriqueiro na imprensa dos nossos dias.

Talvez porque não se trate de nenhuma trama de espionagem ou de conspiração, o filme cujo enredo é um tanto inexpressivo, carregado de texto, exercício que parece caro ao cinema estadunidense, consegue fisgar o espectador e levá-lo a criar para si uma torcida interna para que os planos de romper com o silêncio ensurdecedor sobre o horror ganhem a dimensão almejada pelos jornalistas. 

Não é uma vingança o que Spotlight suscita no espectador, mas uma sensação da necessária ruptura com o silêncio sobre a dor alheia e uma saída que ao menos represente outra maneira de olhar para a instituição religiosa. Afinal não é possível conviver conscientemente com a ideia de que a santidade pregada reside apenas no discurso e na prática a coisa é outra. Por isso ninguém sai o mesmo depois desse filme, como não sai mesmo depois de Philomena; se sai, não é questão de fé o que impede ver a religião com outros olhos e sim alienação gratuita.

O filme também não é uma narrativa de heroísmo ou que crie um desfecho cujo o lado do bem tenha prevalecido porque a Igreja em grande parte das situações segue intocável e a única coisa que tem feito contra os pedófilos é condenar os acontecidos com discursos de reprovação mas sem quaisquer punições significativas.  

A rede de pedofilia e o acobertamento dos criminosos numa cidade do interior dos Estados Unidos, do caso de jornal para a narrativa cinematográfica, finda por se constituir numa metonímia preciosa sobre como funciona o mercado do horror numa dimensão maior ou sobre o quanto de outros malfeitos ligados ou não à pedofilia perduram numa instituição que se apoia no valor milenar da tradição para posar de boa moça.

Noutra margem, é uma homenagem ao valor do bom jornalismo e sobre como ele pode reinventar a realidade: Spotlight conseguiu com as mais de seiscentas matérias sobre abuso de menores pelo clero de Boston levar a igreja a se expressar de forma mais enérgica que o escuso interesse de acobertar os criminosos e no tempo das publicações mais de duas centenas de padres foram afastados de suas funções. É lógico que isso não resolve o problema, mas é uma maneira de entregar o corruptor para a que sociedade tenha a liberdade de fazer valer as leis que regem a todos os cidadãos. Não é um ato heroico, mas o valor social é tanto que a bravura coroada pelo Pulitzer em 2003 é renovada pelo Oscar de Melhor Filme em 2016. 

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