A morte como revelação do ser, em A hora da estrela

Por Rafael Kafka



Talvez A hora da estrela seja um diálogo de Clarice consigo mesma, como que prevendo a iminência da morte. Digo “talvez”, pois não procurei outras referências para escrever este breve texto crítico e apenas teço aqui as impressões de quem já leu vários textos da autora e gostou de praticamente todos. Tal diálogo teria uma estrutura diferente, mas uma temática muito similar à de Sopro de vida, livro escrito quase na mesma época. Curiosamente, em uma das passagens finais de A hora da estrela, temos a referência clara a este outro romance.

Nos dois diálogos, o autor tem diante de si sua obra de arte e sobre ela se debruça, porém sem conseguir obter dela qualquer retorno concreto. Afinal, esse retorno só será obtido a partir do momento em que a obra for lida, escanhoada, devorada pelo leitor. O escritor escreve como quem quer se salvar, mas vê o objeto de sua salvação agir conforme sua vontade própria, dominando-o por inteiro, estando aquém e além da expressão de seu ser. Sopro de vida assume esse diálogo em uma forma mais próxima do teatro, mas exibe o puro solipsismo do autor diante do seu objeto de trabalho. Ainda que diante dessa crueldade imanente é a obra de arte que garante ao escritor e à escritora a possibilidade de vida, o seu sopro de vida.

Clarice parece estar diante de um fato irrevogável: vai morrer sem resposta alguma. Colocou-se intensamente em suas obras, quebrando todos os paradigmas possíveis. Não podemos ler o que a autora escreve como quem espera achar bem delineado o começo, o meio e o fim de algo ou a busca da graça. É arriscado, e Clarice adora fazer isso, que ela mate a personagem em seu maior ponto de graça possível. Por esse motivo, sempre que eu ver Beleza americana lembrarei de Clarice, pois o filme aborda justamente uma vida multicolorida mas sem profundidade e a escrita lispectoriana persegue justamente a profundidade.

Mas não é esta uma profundidade metafísica. É existencial mesmo, como Sartre disse, como Camus demonstrou e como já virou banal os críticos falarem acerca sem parecer que eles sentem isso. Falo aqui da náusea, aquela coisa chata que nos mostra todo santo dia que somos livres e que isso tem um peso, que um dia iremos morrer e que somente na hora da morte teremos a nossa hora da estrela, o nosso momento feliz, quem sabe, de dizer o que somos. Antes disso, somos tudo e somos nada e isso pode ser torturante para muitos. Tanto que Bauman diz que muitos se afundam no consumismo para enganarem sua própria náusea, paráfrase minha. Diante de tantas escolhas, as compras são uma bela forma de dominação do eu, mesmo que no final do mês as contas estejam no vermelho.

Clarice dialoga consigo mesmo, procura avaliar, ao que me parece, sua capacidade de se colocar no lugar do outro. Vai morrer e resolve escrever dois romances nos quais decide de uma vez por todas experienciar o que é ser outro. Na arte sempre somos nós em primeiro lugar, mas sempre podemos e devemos também tentar ser o outro. Em Sopro de vida ela deixa evidente que escrever faz parte de um processo de plenitude nunca plena que nos vicia e nos leva ao delírio – eu que o diga – ainda mais quando não conseguimos produzir nada que nos convença. Se bem que no fundo nada nos convença, tanto que Clarice tinha a mania de não olhar os textos depois para revisão, algo que também tenho em mim e que se eu acreditasse em signos diria que é mania típica de sagitariano com medo de perder tempo e vontade de passar logo adiante.

A hora da estrela revela Clarice sendo homem, carregado de privilégios e preconceitos; é uma narrativa mais padronizada. Parece que a autora, a qual nunca aceitou o rótulo de feminista, mas passou todos os seus livros a discutir como poucas pessoas fizeram a condição da mulher fechada em tantas determinações, decide se colocar de vez na consciência de um homem para mostrar como esses seres com órgão fálico também somos uns fracassos ontológicos. A escrita se torna a salvação de SM e ele sem motivo relevante, por conta de um rosto visto na rua, decide escrever sobre uma pessoa banal, tão banal que só ganhará nome bem tardiamente na história: Macabéa. Em um preâmbulo metalinguístico bastante interessante, ele se justifica por sua visão:

"Como a nordestina. Há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam; Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe?"

Macabéa é da extirpe de Fabiano, de Vidas secas, ou de Chico Bento,  de O quinze. É banal por ter perdido sua humanidade, por vir de uma região a qual sofre com o descaso político. Macabéa é da extirpe dos pobres espalhados ao redor do país, que todo dia precisam trabalhar com ou sem saúde, não sabendo ao certo em quem votar nas próximas eleições, aceitando os cinquenta reais do voto, pois na verdade o Estado para eles é coisa inexistente. Macabéa não reclama porque não há porque e para quem reclamar. A vida é assim mesmo. O estoicismo dela se mostrará em todos os momentos da história, inclusive quando Olímpico de Jesus, que ela pensa ser o amor de sua vida, a tratar mal ou quando o mesmo a largar por uma colega de trabalho. Ou mesmo em momentos mais drásticos, como a doença séria anunciada pelo médico que bem poderia ser aquele daquele posto de saúde perto de sua casa, o qual não suporta olhar na cara de gente pobre, ou quando está prestes a perder o emprego.



Porém arte é acima de tudo representação e Clarice era alguém que se preocupou em fazer da arte um jogo de representação de si mesma. Ao se colocar como homem, ela começou todo um processo metalinguístico o qual mostra o escritor como um ser não sagrado, limitado em seu tempo e espaço, mesmo produzindo algo belo como a literatura. Rodrigo SM parece incapaz de produzir um romance-denúncia como os que foram feitos por Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos, mas parece também não se importar com isso. O que importa para ele é colocar no papel a sua incredulidade diante de uma personagem a qual não transpassa vigor algum para a vida, cuja maior poesia é justamente não ter poesia.

"E assim se passava o tempo para a moça esta. Assoava o nariz na barra da combinação. Não tinha aquela coisa delicada que se chama encanto. Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela. E só eu é que posso dizer assim: “que é que você me pede chorando que eu não lhe dê cantando?” Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver."

SM. voluntariamente se fecha ao contexto social de Macabéa para explorar suas idiossincrasias. Diante de nós temos um ser banal, um ser humano cuja essência interior foi anulada pela selva urbana e pela seca do nordeste. O êxodo rural aparece de forma implícita dentro do romance e Clarice cria um verdadeiro paradoxo: acaba criando uma espécie de romance engajado sem ser engajado socialmente no sentido mais estrito do termo. Ela mostra os efeitos do fenômeno social da pobreza em Macabéa, uma criatura que vive na mais extrema miséria e cujo maior prazer é ouvir uma rádio relógio com saberes aleatórios.

Nem mesmo falar ela consegue, o que aborrece Olímpico, o qual viu nela algum tipo de encanto, provavelmente ligado ao sexo casual fácil. Macabéa reflete o silêncio de quem não tem nada a dizer diante de um mundo complexo e profundo em seu jogo de finitude e infinitude, como diz Sartre no começo do seu O ser e o nada. Chega a ver a tristeza como artigo luxuoso e vê a perda de Olímpico como algo normal, natural, um passo a mais na vida.

Por sinal, o tempo nessa curta obra me levou a pensar na Montanha mágica, de Thomas Mann. Ele segue de forma aparentemente imperceptível. A sucessão de fatos é feita de forma veloz apenas para dar conta da banalidade da vida da protagonista, que deve se repetir em um ritmo similar ao das tardes monótonas de Hans Castorp tomando sol no sanatório onde a priori era um visitante. A falta de consciência de tempo, nos dois projetos literários bastante diferentes um do outro, mostra como a mesma revela o alheamento de si mesmo, típico do mundo moderno cada vez mais difuso e profuso. Se Macabéa ainda mantém algum tipo de unidade, assim como Castorp, isso se dá pelo seu silêncio, assim como o jovem engenheiro de Mann se entrega a sentir o tempo correr pelas suas veias.

Mas um dia, Castorp precisou encarar a realidade da Guerra e seu autor o ignorou. Não era de seu interesse falar, em um romance polifônico, dos destinos individuais de um jovem apaixonado por olhos oblíquos. Macabéa também precisa encarar a vida e é justamente na morte que ela a encara com maior violência, descobrindo finalmente sua banalização e que é alguém, alguma coisa nessa absurda realidade na qual todos vivemos. Primeiro, ela descobre ter tuberculose pulmonar, depois decide-se ir a uma cartomante. Ali tem a promessa de um destino libertador, de uma nova vida, de riqueza, de um príncipe caucasiano, porém um simples atropelamento acaba com todas as suas expectativas.

Lester Burnham entendeu toda a poética de sua vida momentos antes de morrer e no processo restante de sua consciência. Macabéa também. Na verdade, Macabéa teve a chance de nascer ali, naquele momento, de se sentir única, pois se a pobreza é um fato social a banalizar o ser humano, a morte sentida por nós, como bem já demonstrou Heidegger em seu Ser e tempo,  é um fato que revela toda a crueza e absurdo de nossa individualidade. A morte é necessária à vida como complemento, pois é por meio da consciência dela que o ser humano se desperta para si mesmo. Não à toa, em um mundo onde a morte é banalizada, as pessoas parecem cada vez mais alienadas de si mesmas. E também não é à toa que Rodrigo SM parece se deliciar com a cena da morte, pois finalmente viu sua personagem sair de sua banalidade torpe para virar uma criatura plena de sentido.

"Um gosto suave, arrepiante, gélido e agudo como no amor. Seria esta a graça vós chamais de Deus? Sim? Se iria morrer, na morte passava de virgem a mulher. Não, não era a morte pois não a quero para a moça: só um atropelamento que não significava sequer desastre. Seu esforço de viver parecia uma coisa que, se nunca experimentara, virgem que era, ao menos intuíra, pois só agora entendia que mulher nasce mulher desde o primeiro vagido."

Não há aqui determinismo. Há apenas consciência do corpo feminino, do modo de ser feminino, relatado por um homem. Clarice criou um projeto de escrita destinado às idiossincrasias dos seres e por isso é uma obra cheia de vida. O ser mulher que Macabéa descobriu, no momento de sua morte, é tão somente aquilo que ela esqueceu ao longo de sua vida, em um processo que me faz pensar na cena de O menino e o mundo no qual, na estação ele vê seu pai multiplicado por vários: a perda da identidade. Talvez Rodrigo SM tenha a escrita a seu favor, mas provavelmente tem consciência de que em um mundo como o nosso esse é um risco constante – da banalização. Daí a arte ser tão precisa, tão necessária. Ela nos ilude de que deixamos alguma marca nesse mundo e de que somos importantes para alguém, ao menos para o leitor inquieto para sair também de sua banalidade.



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