Sete livros de ficção científica da literatura russa

Isaac Asimov, possivelmente o mais conhecido da ficção científica russa, mas não o único.


Exceto os autores clássicos da antiguidade cujas obras poderiam ser incluídas na classificação de ficção especulativa, a ficção científica europeia e, por inclusão, a russa, começaram sua trajetória em meados do século XIX, coincidindo com o começo do desenvolvimento científico e com a percepção de que a ciência continha em si mesma a semente para ser uma disciplina sujeita a evolução; o que haviam sido tentativas isoladas e anedotas se converteu, por acumulação de títulos, numa corrente que desembocou na configuração de todo  um gênero literário.

Os autores russos que se destinaram a este nascente gênero, diferentemente dos franceses e anglo-saxões, não foram muito conhecidos e nem suas obras passaram a fazer parte da literatura popular; é possível que o peso específico dos romancistas realistas nessa verdadeira Idade do Ouro da literatura russa relegou ao desconhecimento os que cultivaram a ficção científica, mas teve também sua parte de responsabilidade, de forma parecida ao que se passava no resto do Ocidente, a desvalorização deste tipo de romance comparado com a literatura realista.

A idiossincrasia política russa, tanto no tempo dos czares como nos alvores da Revolução de Outubro, marca outra diferença fundamental nas obras de ficção científica: o reflexo da crítica ou o enfrentamento aberto com a situação política presente ou futura, referência que será fundamental no desenvolvimento do gênero a partir do triunfo do bolchevismo. De fato, existe uma vaga mas interessante correlação entre a época histórica e a natureza de muitas dessas obras, o que relaciona as produzidas na época czarista, que costumam ser utopias que revelam um mundo melhor e as escritas na época pré-revolucionária, que adquirem um caráter distópico nada esperançoso.

E quanto aos temas tratados, não diferem em essência dos comuns ao gênero, embora é certo que existam algumas particularidades locais que os distinguem do resto da ficção científica ocidental. Dentre a variedade de enfoques, que incluem um humor tremendamente ácido e uma seleção de temas que pode ser citado aqui como uma oferta sobre o panorama deste gênero na literatura russa é válido citar: a viagem no tempo a um futuro modelo de progresso científico e humano; a viagem à região mítica, uma Shangri-La de natureza isenta da intervenção humana que seguiu um desenvolvimento progressivo devido à sua evolução natural sem nenhuma alteração; a descoberta de um passado comum à origem de todas as civilizações da Terra, extintas e sobreviventes e a contribuição da paleontologia para o conhecimento desse passado; uma troca de correspondências entre um futuro distante depois de uma viagem no tempo de um deles em que tratam sobre a diversidade de invenções tecnológicas e com exemplos da participação do povo russo frente a todos os avanços sociais; a viagem onírica de alto tom didático à Lua em que se explica com todo luxo de detalhes os efeitos da vida humana no satélite; a distopia – que mesmo ligada a 1906 – antecipa a crítica ao sistema comunista, à coletivização e o pretendido paraíso na Terra prometido pelo sistema soviético; a invenção de uma máquina açoitadora de alunos rebeldes que não supera a fase de demonstração; o apogeu e destruição da República Antártica da Cruz do Sul, trânsito terrestre da colonização de outros planetas organizada em torno de um sistema coletivista e sob um regime ditatorial de aparência democrática que sucumbe a uma epidemia de “contradição”, uma variedade de dissonância cognitiva; e, o talvez seja o melhor, o avanço da ciência capaz de construir uma sociedade modelo, a medicina da imortalidade e, como no final, depois de milênios de vida, os sujeitos caem sob o cansaço vital, considerando o suicídio como uma alternativa possível à imortalidade.

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A seguir, apresentam-se alguns títulos da ficção científica russa que podem servir de entrada a esse universo outro da literatura do gênero:

1. O homem anfíbio. O romance foi publicado em 1928 por Aleksandr Beliáev e conta a história de um jovem chamado Ikhtiandro que, na infância, teve implantadas guelras de tubarão.

2. Cem anos à frente. É uma novela publicada em 1978 pelo soviético Kir Bulitchov; a narrativa descreve pela primeira vez um dispositivo que hoje se conhece como smartphone ou tablete.

3. Aelita. Escrito em 1923 por Aleksêi Tolstói, a narrativa conta a história de dois habitantes da Terra que encontraram em Marte uma cidade destruída com sua biblioteca preservada.

4. Nós. No romance de Evguêni Zamiátin, publicado em 1920, a humanidade começou a produzir alimentos do petróleo e resolveu de uma vez por todas o problema da fome. Num mundo em que já não há raças, nomes, modas, nem vida pessoal, todos os humanos ganham por dia seus cubos derivados do petróleo.   

Aleksandr Bogdanov

 
5. A estrela vermelha. O romance de Aleksandr Bogdanov que descreveu um aparelho interplanetário data de 1908; aqui o leitor encontrará a nave espacial marciana eteronef – dispositivo feito para viajar no éter, feito de alumínio, de forma oval e que se desloca à velocidade de 50Km por segundo.

6. Eu, Robô. Coletânea de 9 contos escritos pelo russo Isaac Asimov e publicada em 1950. Os contos discorrem, sucessivamente, sobre a evolução dos robôs através do tempo: o conto “Robbie” trata de um robô-babá não equipado com um mecanismo de fala que é discriminado e repudiado pelos seres humanos; daí a história evolui para a proibição do uso de robôs na Terra, e no último dos contos ("O Conflito Evitável") há a suspeita de que o “coordenador mundial” (figura que é responsável pelo governo do planeta) também seja um robô.

7. Metro 2033. Livro de Dmitri Glukhovski publicado em 2005. O enredo se passa na cidade de Moscou; após uma catástrofe nuclear, os sobreviventes passaram a se refugiar nas estações de metrô.

* Os cinco primeiros títulos estão listados por Viktória Uchakova na Gazeta Russa entre seis obras da ficção científica russa que “previram o futuro da humanidade”. As informações que antecedem a lista são de Joan Flores Constans em tradução de "Ciencia ficción rusa y soviética" (Revista de Letras).

Comentários

Sara Leal disse…
Essa definição de Nós não é muito condizente com a história. De fato, no livro os seres humanos não tem nomes, personalidades, sentimentos e muitas outras coisas. Porém, isto de que o petróleo solucionou a fome não é dito. Não há mensão disso no livro.
Sim, é dito que os humanos encontraram meios de erradicar a fome e outros problemas "dentro do muro", mas não se diz qual solução foi esta. Muito menos há mensão de que cada cidadão receba sua cota diária de "cubo de petróleo".
Posso estar equivocada, mas em nenhum lugar de minha leitura li estas passagens de "cubos de petróleo".

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