A Tenda dos Milagres e a resistência negra

Por Rafael Kafka


   
Provavelmente, o maior amor literário desenvolvido por mim em 2017 foi Jorge Amado. Demorei 28 anos de minha vida para entrar em contato com a obra de um dos nossos maiores romancistas e só não me arrependo mais, pois nesse meio tempo conheci muitos autores bons que me ajudaram a expandir os limites de minha percepção intelectual e estética. E porque enquanto formos vivos sempre há tempo para novas e interessantes descobertas.

A obra de Jorge tem sido lida vorazmente por mim nos últimos meses. Li cerca de cinco livros deles, alguns com análises pendentes ainda por problemas de tempo. O que percebi em todos os livros como traço marcante de Jorge é uma literatura de linguagem transparente, simples, poética e documental no sentido de refletir sobre o ser humano brasileiro, em especial o habitante do nordeste, em especial da Bahia.

Mas, Amado não cai no erro que muitos escritores em minha terra, Pará, caem. As situações em suas obras e os discursos falam por si mesmos e não há um discurso ufanista no sentido de combater preconceitos sociais por meio da autoafirmação do ser humano nordestino. Ele faz a história revelar a dimensão existencial de seres tidos como inumanos e usando o contexto social como bom pano de fundo revela a profunda dimensão existencial de criaturas que ferem a antiga lógica do romance de salão.

Não à toa, o maior autor paraense, Dalcídio Jurandir, tinha em Jorge Amado um grande fã, de quem inclusive recebeu o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra. Dalcídio focou sua experiência estética na imensa ilha do Marajó e na cidade de Belém, usando uma narrativa profundamente existencial e situacional para revelar as dimensões existenciais dos problemas de ordem social existentes no Pará. Assim como Amado, o misticismo se mescla à narrativa para mostrar demonstrar como seres de carne e osso convivem com os chamados encantados, seres fantásticos do folclore paraense, como a Mãe d´Água.

Nesse sentido, a leitura de obras literárias não deve assumir um discurso ufanista ou didático para falar deste ou daquela região no sentido de enfatizar seus traços característicos. Uma boa história a qual mostre as situações em um contexto amplo usando de forma interessante elementos culturais certamente surtirá efeitos positivos por convidar o leitor a participar ativamente da construção de significados e sentido do texto. Nesse processo, o autor pode revelar muito do ambiente social seja com o intuito de denúncia, seja tão somente na construção crítica de um processo identitário.

Tendas dos Milagres é um romance no qual isso é feito de forma mais direta, mas sem assumir o ufanismo didático que estraga tanta obra que se julga dona de mérito combativo. Mais acima citei Dalcídio, dono também de um estilo que muitos colocam como realismo mágico, e lembrei que há algum tempo pensei em escrever sobre como tal escola em torno da premissa comum de abordar situações absurdas por meio de uma aparente normalidade literária permitiu a um sem número de escritores a construção de estilos próprios, únicos.

Amado tem muito de realista mágico por se utilizar das entidades do candomblé e d umbanda como seres épicos que coexistem pacatemente com os seus seguidores. Ademais, Amado usa e abusa demais do recurso de desconstrução do tempo, algo percebido por mim em obras de Gabriel García Márquez. Gabo não tinha pudor em dar pequenos spoilers de fatos futuros de determinada obra, mas ainda assim ele conseguia tecer uma narrativa que nos fazia ficar presos, mesmo sabendo que determinado personagem, o qual já está morto dele a página 50 do romance, agora tem seu passado sendo explorado em minúcias pelo narrador.



O realismo mágico procura dar conta de uma realidade humana confusa, complexa, chocante e bela ao mesmo tempo e por isso quebra a lógica romanesca tradicional em diversos pontos, mesmo ainda preocupado em manter o romance com certa unidade de começo, meio e fim, apesar de tal fim ser em alguns momentos algo propositalmente vago. Amado não se poupa de ressuscitar um marido abusivo e carnavalesco para voltar a ter um romance com a esposa de ar virginal, já casada com honrado cavalheiro, usando os aspectos da umbanda para tornar o fato mais verossímil; ele nem mesmo se preocupa em usar elementos trágicos para falar da vida dos donos de saveiros, os quais em alto mar estão o tempo todo diante da morte e ainda assim veem sem medo o seu destino.

Em Tenda dos Milagres, sabemos desde o começo que Pedro Archanjo está morto. Amado então mostra como o mito em torno do homem mestiço que enfrentou as teorias arianas na Bahia se tornou o que é, explorando os tempos de libertinagem, de trabalho como Bedel na faculdade de medicina da Bahia e a da escrita de livros sobre a miscigenação como elemento fortificador da sociedade brasileira. A narrativa é cortada em vários planos temporais e busca mostrar os danos causados pelas teorias racistas de pessoas como Nilo Argolo na vida do povo baiano mais humilde. Archanjo, típica figura malandra se utiliza do texto escrito para combater tais teorias, o que gera fúria na ala mais conservadora do estado.

Mesmo focado em Archanjo, a obra acaba se revelando uma panorâmica sobre a vida baiana na metade do século passado e dá conta de mostrar o racismo não apenas ligado a questões estéticas e de pele, mas a todo um conjunto de elementos sociais que perpassam as questões religiosas. Destarte, a afinidade criada por Pedro com o menino Tadeu é a afinidade de quem encontra um aliado, um protegido, em uma luta árdua contra o preconceito étnico e racial persistente mesmo em uma das terras mais miscigenadas do território brasileiro.

Tadeu sente o racismo na pele quando decide se casar com Luiza, irmã de um colega da faculdade de engenharia cuja família sempre viu no rapaz um bom moço. Todavia, a relação afetiva com Luiza soa como afronta, como ruptura de um espaço social que deveria ser mantido intacto. A fúria do coronel pai de Luiza nos faz pensar nas velhas frases de quem se isenta de racismo por ter amigos e conhecidos negros. Para ele, a presença de Tadeu em sua casa já soa como a prova de não ser um cruel preconceituoso, algo parecido com a Santa Inácia criada por Monteiro Lobato em seu clássico conto Negrinha, que castigando ferozmente a pobre criança, para afirmar a superioridade de seu ser caucasiano, usava o discurso bíblico e da caridade para ter paz de espírito.

O racismo também se mostra no romance na perseguição feita por forças policiais aos terreiros de umbanda, algo defendido por lei nas primeiras décadas do século passado. A simples realização de cultos revela-se uma verdadeira batalha pela sobrevivência, pois a qualquer momento invasores sádicos se utilizando de teorias racistas poderiam surgir e destruir culto e seguidores com a força do Estado a seu lado.

Tenda dos Milagres acaba se mostrando uma história sobre a resistência. Todo gesto negro aqui é resistir. O culto aos santos, o amor por uma pessoa de classe social e cor diferente, a escrita como forma de contradiscurso  às falas racistas, o samba , o carnaval, etc, assumem um ar de celebração ao ser negro, celebração esta que se revela luta contra o discurso hegemônico o qual, de forma tácita ou não, prega a destruição do negro e de sua cultura.

Porém, como disse acima, a obra de Amado se torna bela por não apelar para o ufanismo barato. O escritor na figura de seres como Pedro Archanjo mostra situações nas quais a resistência é um processo espontâneo quando o ser está em processo de opressão, mesmo que essa resistência depois descambe em um discurso o qual reforce as opressões sociais, como o famoso personagem de Samuel L. Jackson em Django Livre: um negro que idolatra o lorde racista.

A resistência é um elemento a aprimorar o fator provocativo da obra literária, fazendo o leitor encarar aquilo que o mundo lhe mostra. Resta a ele decidir o que fazer com isso: se agir como o coronel fingindo uma solidariedade ou se realmente se engajará nos combates às situações de opressões a outras etnias e outros modos de ver e sentir a realidade.

***

Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos  (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.

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