Ensaio sobre a obra "Plantar rosas na barbárie" Luís Serguilha

Por Ana Maria Oliveira




Luís Serguilha, poeta argonauta, expande-se como explorador de enigmas espaciais avançando no seu registo como prospetor de subterrâneos linguísticos, submergindo no abismo oceânico. A sua escrita explora fissuras e avalanches sendo fruto de um permanente olhar vigilante, precursor de terrenos insondados, denunciadores da mutação existencial.

O poeta desprovido de ego, mente espontânea e aberta, transformante invasor de amplitudes, acede à distensão do acontecer. Metamorfoseia-se com o mundo, distanciando-se do humano. Torna-se viajante e arqueólogo, mantendo sobre os espaços e tempos, um enxergar multidimensional, onde o surgimento de reentrâncias de ligação, provoca a interdependência entre o poeta e geografias díspares. 

A palavra para Serguilha tatua-se como veículo instigador de saltos quânticos, onde simbologias primitivas acenam, como hélices originadas por sinapses em conexões atemporais. Labirintos transformam-se num alastramento de fractais onde porventura se excede o tridimensional.

A poesia de Serguilha vibra como singular hermenêutica do inconstante, sem coordenadas nem centro. Tuaregue, sinalizador de afluências e discrepâncias de universos alterados, é como leitor de hieróglifos, que elabora uma tentativa de assimilação da linguagem cósmica, de olhar fraturante sobre múltiplas direções. Captador de mundos invisíveis oscila numa tentativa de conhecer as suas possibilidades infinitas.

O poema acontece como passadouro, numa escrita cujo tema recai sobre as conjunturas do mundo, num exercício de evasão do calabouço do corpo. A força triangular com outros olhares, cujos vértices dão pelo nome de terra, poema e corpo é agitada por cataclismos bárbaros, onde sofrem miscigenações, sendo que o enigma existencial  é dirigido aos furores norteados pelo ilimitado e indefinido, lembrando o conceito de “Ápeiron” de Anaximandro.

Serguilha, o explorador de dimensões aquáticas, mergulha no espanto das memórias ontológicas, em reminiscências que absorvem a velocidade infinita, onde tudo se absorve e vomita. Este mergulhador de desvios e demências, poeta metamórfico desprende-se da linguagem, fazendo parte de um tempo indizível. Absorve sons inaudíveis escutando esquizofrenias, em que a submersão torna-se uma viagem às profundezas do volúvel, transmutando deformidades em renovamentos.

O poeta trespassado por eletromagnetismos, não tem limites na sua imprevisibilidade surfista. Como escafandrista funde-se com o mar, na dissolvência de fronteiras onde não há verdade nem construções, apenas durezas textuais.

Poeta e incomensurabilidade desassossegam por entre o fluido, onde a inexistência de demarcações, sugere resvaladouros titânicos indeterminados. Imerge no transe, arriscando alcançar a balburdia linguística, nas correntes lávicas de babel. Aspira o incircunscrito, o esquecimento e a barbaridade cénica.

O poeta expande-se deslizando por fendas espácio-temporais, onde se dão mutações incessantes, em analogia com o devir de Heráclito, filósofo pré-socrático. Assim, a existência e a arte religam-se aos processos cósmicos, à afetação e troca de energias, num cenário de roubo e miscigenação imperecível.



Salientam-se três questões fundamentais na obra Plantar rosas na barbárie respetivamente de caráter ontológico, do funcionamento de vontades, e da hermenêutica, apontando tais interrogações para o poder de contaminação subjacente à existência.

A questão fundamental transversal ao longo do livro, de caráter ontológico diz respeito ao funcionamento dos desdobramentos.

Todo o tempo se torna presente num devir cosmológico onde afloram sinais panteístas em diversidade germinativa. Acontecem recomeços instintivos e regeneradores de conexões em anarquia.

Uma teoria nova do tempo sugere que passado, presente e futuro coexistem em simultâneo no universo. Esta nova ideia defende que o tempo não avança sendo que todo o tempo é presente, que não seria um ponto no tempo mas uma condição temporal dispersa.

O tempo é aqui-agora, onde os sinais panteístas afloram. Aqui e agora tudo alastra com instantes em atualização permanente repletos de metamorfoses magnéticas. Aqui e agora a mestiçagem dos recomeços instintivos na miscigenação dos corpos. Faz-se o aqui e agora como se o olhar se debruçasse pelo lado do avesso do mundo, com o uivo da estranheza qual tragédia grega antiga, denunciadora do incontrolável em que as catástrofes reaparecem regeneradoras.

Dá-se a morte contínua de Deus por entre fissuras geológicas e migrações em embates ontológicos, conexões movediças e transmigrações. Acontecem enredos báquicos onde tudo se mutila em multidões serpenteantes numa exaltação dionisíaca, onde proliferam zonas contaminadas pela matéria e se anula a ideia de um único centro, vibrando potências e devires de experimentação.

Em Serguilha, tal como em Heráclito, o mundo é um fluxo permanente em que nada permanece idêntico a si mesmo. Tudo se transforma numa luta entre os contrários, ou seja, do tornar-se, do vir-a-ser. Sucede um devir escatológico onde todos são afetados por todos.

Uma outra temática refere-se ao acionar das vibrações, respeitantes às vontades impercetíveis.

A conceção de vontade heterónoma aparece com Immanuel Kant, noção que faz depender de outros os desejos de cada um. Em Serguilha, as vontades acontecem num abismo e desmoronamento. Neste contexto são acionadas multidões insubordinadas, potências conquistadoras e afeções de tenções descentradas de eternos retornos em que a repetição é levada ao absurdo tal como em Sísifo, de Albert Camus. Há um acionar da ligação da antimatéria ao mundo material, detonando em contaminações, de corpos e memórias. Então o dizer abre-se às forças transformantes da natureza. Tudo sobrevém no vorticismo, na demolição e nos ritmos devorantes.

O mundo acontece de forma heterogénea e rebelde, de energias magnéticas e sistemas indescritíveis de sincronismo. As vozes geográficas fazem-se de participações pulsantes, de fractais, de coexistências.

Somos contaminados pelas demências nómadas onde não existem pontos de partida nem chegada e se dá o devorar de línguas sempre por vir de outros povos transumantes. Afeções, delírios e misturas entre lutadores estéticos da natureza, teias de relações, choques atemporais como pujança da magnitude do lahar.

 A existência é inacessível, sugerindo o conceito de númeno em Kant. Há um distúrbio de vontades aglutinadas e instabilidades em planos de probabilidades. Todos os elementos sofrem e são afetados por outros elementos, surgindo dinâmicas onde tudo ressurge e persiste. Nada é alcançável e tudo se transfigura. A existência acontece sem graduações, onde os estados intermediários proliferam e as vontades soltam-se numa infinidade de transumâncias. Circulam as transferências onde nada está fixo. Tudo está conectado com tudo, numa errância permanente, regenerações, metamorfoses e desequilíbrios. A vida e o transe se juntam no caos dançante do pensamento. A língua mãe tem outras línguas e psicopatias. Uma miscelânea de mundos alucinogénios onde se repetem transitoriedades numa tentativa de dar sentido à metamorfose do corpo, mantendo-se o mistério da proveniência das vontades, subsistindo apenas a vontade errática e viajante de metamorfoses sem pontos estáticos. 

À contenda acerca do como relacionar polissemias dos espaços e as ligações da matéria, a relação faz-se através do espanto tal como na filosofia grega antiga, como se o saber nos viesse de um processo oriundo de um mecanismo de reminiscências, embora se admita que não existem respostas, mas sim processos dinâmicos. O poeta navega na assimilação de instabilidades numa postura de desprendimento da linguagem, escutando sons inaudíveis para o senso comum.

A palavra como projeção do indescritível, denuncia na relação língua-mundo, transmutações e desvios onde polissemias sucedem em transformações impessoais. A palavra seria uma forma de dar sentido à metamorfose dos corpos. A língua vibra numa avalanche pensada nos desvios onde se reinauguram vestígios acústicos, tragédias diabólicas numa mistura entre apolíneo e dionisíaco, fazendo-nos sair das normas em releituras clandestinas, incontroláveis e permutáveis transformando-se em lahars.

O poeta vigilante capta a incerteza, desmaterializando e desbravando as múltiplas significações dos espaços e matérias. Há uma sedução quando perscruta sobre superfícies aleatórias, em que a palavra serve para produzir olhares instáveis eliminadores de individualismos. Há um tempo fora do tempo do relógio, feito de tempestades e turbilhões onde se dão os registos anorgânicos em simultâneo com fecundações e sombras expressionistas de coexistências. No seu processo assimila instabilidades refletidas nas transmutações, onde tudo se devora e regurgita, infiltrando-se nas memórias ontológicas. Explorador de encadeamentos topográficos, não tem limites na sua imprevisibilidade surfista. Tenta traduzir os deslumbramentos onde não há verdade, absorvendo unicamente o ilimitado, a obscuridade e o terror, ficando o seu grito de espanto sem resposta.

O tuaregue cósmico magnético em mutação e desaparecimento, está dentro do tempo primordial, escrevendo múltiplos sentires, em jogos de troca, dentro da pluralidade de perspetivas oscilantes e mutações linguísticas de aprendizagem, de religações sem julgamentos.

O excriptor acrobata deixa-se atravessar por outras vozes, sentindo o intangível, como experimentador mutante num caos criador. Capta o tempo puro enquanto se deixa atravessar por forças do incompleto, onde não há morte. A força que liga a natureza ao poeta traduz-se pela complexidade caótica híbrida que é aplicada à escrita de forma não emocional, sem classificações deterministas numa visão de mundos sem cronologias. Alcança os múltiplos mundos e as forças bárbaras, pressentindo a encadeação do processo do mundo de constrangimentos onde se movimenta a balbúrdia. Desliza no delírio dos encontros sem intencionalidade nem servidão, abrindo-se ao estar no mundo sem rosto, em que o eu, é anulado. Acontece entre as experimentações e a língua, alimentando-se da dúvida fractal num pensamento invertido captando assimetrias, arquiteturas labirínticas, explorando contrastes. Experimenta-se a si próprio, quando explode em questionamentos e encarnações de memória coletiva onde não se referenciam limites de morte e vida e as densidades do transe provocam transmigrações do pensamento.

O leitor experimenta a estética em vigília e contamina-se, pela corrente entre espiritualidade, ecologia e cosmovisão. Mergulha no incorpóreo atravessando matérias, não suportando, a racionalização do discernimento, incorporando forças incontroláveis e vivendo de oscilações expressivas. O escritor-leitor sai da língua ditatorial numa tentativa de desobstruir a vida de reclusão.

O fazer poético está em ligação com as forças da natureza, numa hermenêutica estrangeira, vive no improviso, das leituras alucinogénias, deixando um rasto do que é incognoscível, num permanecer anarquista de lógica contraditória em transe, distanciando-se de verdades consolidadas, e opiniões. Cria uma zona entre ficção, realidade e tempo puro, aberta a intensidades anteriores à escrita. A palavra torna-se convulsão repetitiva tormentosa de heteronomia, num mundo de infinitas probabilidades. O êxtase e o horror da poesia é deparar-se com uma realidade ininteligível. O poeta expande-se como incorporador de escrita, de esquemas existenciais sem consciência onde a língua, fundindo-se com psicopatias, religa a complexidade do tempo passado, presente e futuro entre os jogos do mundo.

Desde eras primitivas que cenas de petróglifos patenteiam frestas de passagem para outras dimensões em experiências de deslocação, num maneira diversa de concatenar os saberes da vida, experienciando a dinâmica primordial da Natureza surpreendente e absurda em que tudo sofre e se transforma. As questões de onde, como e quando, sofrem miscigenações envolvendo energias que ocupam um ambiente obscuro espaciotemporal com forasteiros donos de outros olhares. No entanto é numa tentativa de resposta ao “como”, que o poeta acontece e vibra, deixando-se deslizar numa avalanche indomável.

Luís Serguilha resvala sobre planos moventes onde transitam quereres heterónomos, habitando diferentes esferas, onde tudo se conecta e derrapa.

O ser humano é circunscrito, uma vez que existem encalços que desconhece, embora de forma intuitiva a própria arte faz do corpo, um desbravador de diversidades, ávidas de vida e de infinitas correlações. O poeta em transe denuncia-se como inconsciente esgrimista de palavras, misturando-se com a ferocidade do texto.

Serguilha admite, na sua prosa gótica em linguagem corrida, que as questões levantadas são apenas magnetismos sem respostas.

Plantar rosas na barbárie é uma obra que estimula o espírito e acrescenta à arte literária a possibilidade do humano, empreender no mundo das descobertas, um voo pleno de possibilidades intelectivas e intuitivas, como se a poesia, tivesse a possibilidade de ultrapassar a própria ciência, mesmo que conduza à jornada infinita de saber que não se sabe.


***
Ana Maria Rodrigues Oliveira é portuguesa nascida no Alentejo, distrito de Portalegre em 1960. É licenciada em Filosofia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Lisboa. Edita o seu primeiro livro de poesia Grito de Liberdade em 2008 pela Corpos Editora. Participa entre 2008 e 2014 em várias coletâneas e em 2015 decide-se pela edição de autor, do seu livro de poesia Espírito Guerreiro. Profissionalmente lecionou na zona de Cascais e também nos Açores. Atualmente exerce num infantário onde desenvolve um projeto de Filosofia para crianças.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Boletim Letras 360º #580

Boletim Letras 360º #574

Clarice Lispector, entrevistas

Palmeiras selvagens, de William Faulkner

Boletim Letras 360º #579